terça-feira, 22 de abril de 2025

Os rossios digitais

Aproveitando a época que nos leva a recordações, houve nos últimos vinte anos uma coleção de abordagens sobre mudanças que o mundo digital trazia. Palestras de Iochai Benkler na USP, textos de Lessig, de Imre Simon, o conceito de “modernidade líquida” de Zygmund Bauman e outros, trataram, com mais ou menos otimismo, das profundas alterações por que o mundo passa. E um objetivo que parece cada vez mais irreal é tentar um mapeamento entre o mundo digital e o estamento legal e social que tínhamos. Essa busca de ajuste pode nos levar a dois erros: o de tentar classificar as coisas novas ajustado-as aos paradigmas anteriores, ou ao de simplesmente ignorar ou minimizar o que acontece, até por ser difícil de entender por toda sua complexidade.


Destacando algumas das características do “mundo líquido” em que entramos e apontadas por muitos, teríamos: a abundância tomando o lugar da escassez, especialmente ligada à produção praticamente sem custos de informação, de entretenimento e comunicação - a imaterialidade dos novos bens, e o fim do conceito de distância geográfica. Dependendo das condições técnicas de momento na rede, é tão fácil acessar uma base de informação na mesma cidade, como páginas web hospedadas em outro continente. Informação recém gerada ou coletada algures, estará disponível em minutos para o consumo e disseminação geral.

De uma forma algo romantizada, o que a Internet nos trouxe poderia ser visto como um reviver do o conceito de “rossio”, ou de “commons” em inglês. As duas palavras não são totalmente congruentes, mas coincidem em trazer a idéia de “recurso de uso coletivo e livre”. Exemplos históricos seriam a Wikipedia, criada coletivamente e colocada à disposição da comunidade e, numa área mais técnica, a simbiose que gerou sistemas abertos como o Linux e afins. O trabalho voluntário e colaborativo de muitos, pelo mundo, gerou produtos que, de alguma forma, desafiaram os tradicionais, criados dentro de empresas de grande porte e com um corpo técnico muito especializado. Outro exemplo mais recentes dessa ruptura é o surgimento e popularização de tipos de licenças abertas, variadas, os “crative commons”.

Como numa gangorra, sucedem-se momentos de grande otimismo com uma reanálise ácida dos novos riscos trazidos. A idéia do rossio, comum e aberto, não impede que surjam formas de explorá-lo. Somos atraidos a fazer parte de agregados, centrados em plataformas específicas, nos alíviariam da necessidade de buscar ativamente por variedade de informações. Um conforto que pode nos levar a posições passivas e comodistas. No afã de fidelizar usuário, sistemas usam algoritmos que aumentam a sensação de pertencimento: de alguma forma premia-se a permanência do usuário fornecendo-lhe mais daquilo de que ele parece gostar. Se a internet acenou com “commons” onde todos teriam acesso geral a informação e comunicação, o aglutinamento de seus usuários em torno de serviços e plataformas volta a gerar um mundo compartimentado, agora não geograficamente, mas digitalmente. E segue a gangorra. Segundo Bauman, “… na modernidade líquida a única certeza é a incerteza”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/mudancas-digitais-desafiam-paradigmas-sociais-e-legais-da-modernidade-liquida/

https://www.lexico.pt/rossio_2/
Significado de Rossio
m. Terreno, que era roçado ou fruído, em commum, pelo povo. Logradoiro público. Lugar espaçoso; terreiro; praça larga. (Port. ant. ressio V. ressio)





Obituário de J. C. Barlow:
https://www.theguardian.com/technology/2018/feb/11/john-perry-barlow-obituary

Iochai Benkler na USP:
https://www.iea.usp.br/midiateca/apresentacao/riqueza-das-redes-simon/at_download/file

Linux e Imre Simon:
https://br-linux.org/wparchive/2009/morre-imre-simon.php

Lawrence Lessig, e Creative Commons
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Lessig
https://pt.wikipedia.org/wiki/Creative_Commons




terça-feira, 8 de abril de 2025

Bolo com arenque



Em 31 de maio o Comitê Gestor da Internet no Brasil completa 30 anos. O duplo político-técnico, que envolve a operação do .br desde 1989 mais o CGI desde 1995, sempre foi reconhecida mundialmente por sua postura coerente na defesa da Internet e seus princípios originais, a par de um funcionamento técnico de escol.

Em 1995, num mesmo dia, houve a criação do CGI por portaria conjunta do ministro da Ciência e Tecnologia, José Israel Vargas, e do ministro das Comunicações Sérgio Motta, e outra portaria, do ministro Sérgio Motta, estabelecendo o que se conhece como Norma 4. Esse conjunto virtuoso de portarias espelhava o resultado de intenso debate, liderado pela comunidade acadêmica e pela sociedade civil, que, à época, eram os componentes principal da Internet no Brasil. Redes como a do Ibase, ANSP, RNP e os reflexos positivos da Eco-92.

A Norma 4 define “Internet” e conceitos de seu ambiente, como “serviço de conexão”. Já deixava claro então que esses serviços são distintos da “rede de telecomunicação que os suporta”. Ou seja, Internet não é “telecomunicação”. Isso ficou ainda mais sólido quando da promulgação da LGT – Lei Geral de Telecomunicações, em julho de1997, especialmente em seus artigos 60 e 61. O 61, em particular reza: “Serviço de Valor Adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas…”. Note-se o setor de telecomunicações era então estatal, e que a própria Anatel seria criada em novembro do mesmo 1997.

O ambiente úbere criado em 1995, época em que praticamente tudo na Internet era gratuito, permitiu seu rápido crescimento no Brasil. Inicialmente com a migração das BBS (“Bullet Board Systems”) existentes e, logo em seguida, com a entrada em cena de empresas de midia, que criaram seus próprios provedores de acesso e de informação, já em português. O brasileiro não é avesso a novidades, e a aceitação da Internet como nova e ampla forma de comunicação foi célere.

O modelo brasileiro, multissetorial e aberto, tornou-se autossustentável a partir de 1998 e foi saudado como espelho fiel dos princípios originais da internet: abertura, liberdade, inclusão. Vint Cerf, ‘pai da internet’, ressaltou: ‘O CGI.br é uma referência global. A internet deve ser construída com a participação de todos, não apenas de governos ou corporações”. Na mesma linha foi Tim Berners-Lee, e outros de relevo na rede. A dupla virtuosa CGI/NIC, modelo invejado, retorna para a própria rede os recursos privados que recebe, e em 2022 pôde gabar-se de operar em SP o ponto de interconexão com mais tráfego do mundo, além de outros resultados auspiciosos.

Trinta anos depois, esse legado é desafiado por propostas que procuram confundir deliberadamente telecomunicações e serviços de valor adicionado (SVA). O argumento ortogonal de que ‘tarifação igual elimina a necessidade de distinção’ é um sofisma diversionista, um “arenque defumado” (“red herring”) que, partindo de uma questão tributária, busca atacar, de forma enviesada, pilares da governança da Internet.

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Norma 4:

https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/normas-do-mc/78-portaria-148

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LGT:

https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/leis/2-l

Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação.

§ 1º Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza.

§ 2º Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis.

Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

§ 2º É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.


terça-feira, 25 de março de 2025

Attendamus!

 Há uma proliferação de sistemas de Inteligência Artificial à disposição dos usuários curiosos, e é sempre interessante testá-los. Se, por um lado, os resultados obtidos variam bastante, desde convincentes e completos, até claramente insatisfatórios, por outro fica-se com uma eventual “pulga atrás da orelha”: será que eles não estão se copiando? Afinal são sistemas abertos e nada impede que recorram aos concorrentes para montar uma resposta satisfatória.

Vários deles são bastante eloquentes quando solicitados a discorrer sobre pessoas específicas. O interessante é que, em diversos casos, o indigitado não reconheceu situações lá descritas como sendo de sua carreira ou passado… Ou seja, pode haver “biografias não autorizadas” geradas por IA, cujo conteúdo é questionável pelo próprio biografado. Nada de muito diferente do que se passaria no mundo real…

Ainda na área das “pulgas auriculares”, um artigo da DW (Deutsche Welle) - órgão bem estabelecido e com versões em dezenas de linguas - sobre iniciativas de combustível sistético fabricado no Chile com participação da Porsche, é acompanhado de vídeo que mostra veículos subindo os Andes, propelidos pelo novo combustível. Ocorre que, ao final do artigo, há uma singela nota que informa: “este vídeo resumido foi criado por IA a ṕartir de um roteiro original da DW, e foi editado por jornalista antes da publicação”. É louvável que o meio divulgue isso mas, de novo, ficamos sem saber o que é real no vídeo e o que seria sintético. De fato aquele automóvel arrostou as íngremes encostas do Andes, ou é apenas algo gerado sinteticamente…

Temos já aqui dois pontos de atenção: quanto a biografias e descrições, o passado que a IA narra pode ou não ter ocorrido; e quanto aos belos vídeos apresentados, eles podem ser irreais. O primeiro ponto lembra uma frase de autoria debatível (Pedro Malan? Roberto Campos?), que postula “no Brasil até o passado é incerto”. Poder-se-ia reescrever a frase como “na IA até o passado é incerto” – afinal as fontes em que a IA bebeu para gerar sua resposta podem não ser primárias nem confiáveis. Basta estarem disponíveis na Internet. Quanto ao segundo ponto, a liberdade artística mistura-se com a verdade factual e, de novo, fica incerto o que é real e o que é sintético. Uma leitura otimista disso poderia indicar uma volta a padrões artísticos do passado, como o Davi, de Michelângelo, em que a arte superaria esteticamente a própria realidade.

A saída, se é que há uma, é sempre mantermos clara a perspectiva de que estamos vendo um catado de dados, com grande variabilidade de justeza e correção, e retrabalhado por sofisticados mecanismos. Lembrou-se um frase que é bastante repetida em cerimônias do rito cristão oriental, onde o oficiante alerta a comunidade: “estejamos atentos!”. No rito romano reformado, essa instigação desapareceu. Restou, porém, na missa tridentina: o “attendamus!”. Em IA é importante vigiar e triar o que ela nos informa. Seu uso é instigante e cômodo, mas que não nos transforme em conformistas. É vital que “estejamos atentos”.

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a notícia da Deutsche Welle com o vídeo citado:
https://www.dw.com/en/porsche-tests-e-fuel-in-chiles-mountains/video-71727356

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sobre Davi, de Michelangelo:
https://pt.wikipedia.org/wiki/David_%28Michelangelo%29









terça-feira, 11 de março de 2025

Deixar herança

Há 30 anos Nicholas Negroponte publicava “A Vida Digital” (“Being Digital”) com o bit assumindo o papel do átomo. Uma transição da economia baseada em átomos (bens físicos) para uma baseada em bits (informação digital), redefinindo indústria, consumo, comportamentos e a própria comunicação. E isso já aconteceu com o suporte físico de livros, música e comunicação, com vantagens óbvias em eficiência, reprodutibilidade, armazenamento e transporte. E novos negócios que prescindem da movimentação de matéria. Como já disse Barlow, “a economia da Internet é mais formada de verbos, que de substantivos”.


O lado, talvez insidioso, do processo é que a base original de informação pode ficar distante. IA contribui para isso: afinal, por que ler um livro na versão original se com a IA consigo um resumo em poucos segundos? Outra referência preocupante surge: o mundo descrito em Fahrenheit 451, ficção de Ray Bradbury, publicada em 1953. Lá os livros são queimados, por perigosos, e sua disseminação e preservação proibidas. A temperatura em que o papel entre em combustão são 451 graus Fahrenheit, mas Bradbury acrescenta que “você não precisa queimar algo para destruí-lo; basta fazê-lo desaparecer da memória das pessoas”, ou seja, a verdadeira destruição residiria no apagamento da memória, na falta de acesso ao conhecimento primário. Se as fontes originais são bloqueadas ou destruidas, tudo pode ser revisto e reescrito conforme a conveniência do poder. O livro destaca a importância das fontes primárias e documentos históricos: o espírito de resistência presente em Fahrenheit 451 faz com que personagens memorizem obras literárias para preservá-las, tornando-se elas mesmo livros vivos.

Se olharmos o cenário hoje, essa ameaça pode não estar tão distante assim. A versão digital de um livro, o “e-book”, pode ser acessada e lida mas, se não puder ser transferida a um dispositivo nosso, o acesso dependerá do provedor. Não só deixamos de possuir o livro, como o que compramos foi apenas o direito de acessá-lo, e esse direito pode eventualmente ser cancelado. Em parte isso já acontece com publicações cientificas: muitas vezes é necessário pagar para acessá-las e esse acesso é revogável se o provedor assim o decidir. Some-se que pode ficar difícil verificar se o que estamos lendo é a versão original, ou algo que colocaram em seu lugar. A analogia segue: ao invés de queimar livros, plataformas podem simplesmente revogar o acesso ao conteúdo digital, apagando-o na prática.

Negroponte prevê um futuro luminoso de integração tecnológica, mas Bradbury nos lembra da importância de preservar nosso passado e nossa identidade. Montag, o protagonista de Fahrenheit 451, cita um conselho de seu avô: "Todos devem deixar algo de herança quando morrem... Algo que sua mão tocou de alguma forma, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer." No mundo digital, essa herança deve incluir não apenas o que está em efêmeros bits, mas também o que preservaremos em átomos para as gerações futuras.

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Sobre Fahrenheit 451:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451

O romance apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. O personagem central, Guy Montag, trabalha como "bombeiro" (o que na história significa "queimador de livro"). No início, ele aceita seu papel sem questionar, mas, ao longo da narrativa, ele começa a questionar o sistema e a buscar significado em sua vida. Sua transformação é o coração da história, simbolizando a luta pela liberdade de pensamento e a importância do conhecimento.O número 451 é a temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius.

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Sobre A Vida Digital:

https://seminarioavancado.pbworks.com/f/Negroponte_vida_digital.pdf

"O livro, escrito em 1995, apresenta a visão de Nicholas Negroponte, pesquisador do MIT, sobre as perspectivas de futuro no que se refere ao desenvolvimento da tecnologia digital, apontando, não apenas a tecnologia em si, mas também prevendo modificações nos hábitos pessoais e sociais decorrentes da apropriação desses recursos pela humanidade. Dessas, observamos que muitas podem ser evidenciadas atualmente, algumas se encontram ainda em fase embrionária, enquanto outras foram superadas"

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Sem mais "downloads"

https://www.theverge.com/news/612898/amazon-removing-kindle-book-download-transfer-usb

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O Projeto 451:

https://www.racket.news/p/introducing-project-451

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Criando brechas

O debate sobre o papel e a ação das plataformas como intermediários de nossa ação na rede precisa ser feito, mas talvez valha-se bem de um olhar reflexivo, que pode parecer ultrapassado, mas que recorre a conceitos básicos. Houve (e ainda há!) uma categoria de intermediários que deveria seguir imune e, penso, devia ser estimulada: a dos que se limitam ao clássico papel de apenas carregar a mensagem, ignorando seu conteúdo. Na velha telefonia e no correio em papel é vedado ao portador o conteúdo do que carrega.

Com o poder da tecnológia e com o atrativo valor de dados e meta-dados, essa categoria de intermediários clássicos mirrou. E, estranhamento, ao invés de estimulos, a categoria pode até sofrer reveses a partir de “boas intenções” de governos.

Se em seu início a Internet nunca se preocupou com o monitoramento/captura de mensagens, com o crescimento do número de usuários e sua concentração em plataformas, essa preocupação voltou forte: basta relembrar o caso Snowden e implicações. Assim, uma ferramente antiga algo esquecida reaparece como possível solução para a privacidade de conteúdos: o uso de criptografia forte. Sem dúvida, esse “forte” pode até ser redefinido com tecnologias novas, mas fica claro que o usuário quer se proteger. Mais que isso, aplicativos de mensageria que buscam atrair esses usuários cautelosos, anunciam criptografia forte ponta-a-ponta como proteção, e que nem eles (os aplicativos) podem ter acesso ao conteúdo.

Se do lado brasileiro a LGPD vem como uma forma muito importante de proteger dados, mesmo que o conteúdo em si da comunicação não esteja muito em pauta, à guisa do combate ao crime há governos que passaram leis obrigando os intermediários a criar uma “porta dos fundos” que permita a leitura do que estiver criptografado. Sem entrar no mérito moral da decisão (certamente, a muitos ela parece eticamente descabida), há restrições técnicas bastante claras. Ora, se há um subterfúgio para acessar conteúdo criptografado, seria no mínimo ingênuo achar que essa “porta” não será usada também por outros atores menos nobres…

Nesta semana soube-se de efeito colateral de tais leis: na Inglaterra, onde uma lei que existe desde 2016 obriga um fornecedor de mensageria com criptografia forte a criar uma “porta” de acesso ao governo. Um operador (Apple) que fornece esse tipo de proteção ao usuário decidiu-se por desabilitar criptografia para os usuários ingleses. Afinal seria uma desonestidade anunciar uma criptografia forte, ao mesmo tempo em que se cria uma brecha de acesso. Mesmo que hoje a “porta dos fundos” esteja apenas nas mãos do governo inglês, não demorá muito até ela ser descoberta pelos que vão querer usá-la para o mal. Afinal, se há uma brecha de segurança, alguém a explorará. Com isso o tiro sai pela culatra e parte dos usuários perde a possibilidade de usar criptografia forte, dado que, com a criação obrigatória da brecha, não há como garantir que ela continue “forte”. Como reza o velho adágio, “o caminho do inferno está atapetado de boas intenções”.

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UK Is Ordering Apple to Break Its Own Encryption 

The Washington Post is reporting[1] that the UK government has served Apple with a "technical capability notice" as defined by the 2016 Investigatory Powers Act, requiring it to break the Advanced Data Protection encryption in iCloud for the benefit of law enforcement. 

This is a big deal, and something we in the security community have worried was coming for a while now. The law, known by critics as the Snoopers' Charter, makes it a criminal offense to reveal that the government has even made such a demand. An Apple spokesman declined to comment. 

Apple can appeal the U.K. capability notice to a secret technical panel, which would consider arguments about the expense of the requirement, and to a judge who would weigh whether the request was in proportion to the government's needs. But the law does not permit Apple to delay complying during an appeal. 

In March, when the company was on notice that such a requirement might be coming, it told Parliament: "There is no reason why the U.K. [government] should have the authority to decide for citizens of the world whether they can avail themselves of the proven security benefits that flow from end-to-end encryption." 

Apple is likely to turn the feature off for UK users rather than break it for everyone worldwide. Of course, UK users will be able to spoof their location. But this might not be enough. According to the law, Apple would not be able to offer the feature to anyone who is in the UK at any point: for example, a visitor from the US. 

And what happens next? Australia has a law enabling it to ask for the same thing. Will it? Will even more countries follow? This is madness. 


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"The road to hell is paved with good intentions"
https://en.wikipedia.org/wiki/The_road_to_hell_is_paved_with_good_intentions

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

IA, uma viagem

Na discussão sobre energia e sustentabilidade, é sabido que os centros de processamento de dados são cada vez mais ávidos por energia e IA é um dos vilões. Mesmo esse fato inequívoco tem que ser tomado “com um grão de sal”, para não cairmos na armadilha do “discurso”: alguns valores apregoados equivalem a porções significativas do que uma grande usina hidrelétrica pode gerar. Itaipu, por exemplo, que já foi a maior usina do mundo, gera ao redor de 14 GW e cada um de seus 20 geradores responde por 700 MW, aproximadamente o consumo de uma cidade de 1.5 milhão de habitantes. Quando ouvimos falar de “data centers” com 700MW, o consumo de uma cidade do tamanho de Recife ou Porto Alegre estaria concentrado num único prédio. Bem, numa época de narrativas, IA não poderia ficar imune: se é fato que IA pede quantidades enormes de energia, que a ela seja atribuido o consumo de grandes quantiodades de água, parece suspeito. Sim, a água é o fluido mais usado para remover o calor de dentro dos componentes. Mas essa água, que entra fria e sai quente, continua água! E em qualquer instalação minimamente racional, após resfriada externamente. ela volta ao ciclo. Assim, o alerta sobre o enome consumo de energia, não precisa ser “apimentado” com um mítico “consumo” de água…

Numa outra vertente, há a discussão da substituição completa do humano com processos decisórios tocados pela IA. É um risco latente mas, por enquanto, parece exagerado. A prioridade atual das LLM é gerar respostas que sejam fluentes e verossímeis, mesmo que de exatidão discutível. Isso irá evoluir e há cada vez menos respostas absurdas, mas estamos longe de repassar a decisão à IA. Recentemente destacou-se a capacidade da IA em mimetizar a fala de um indivíduo. Imitar o timbre de alguém facilita armar golpes: se ouvirmos, na inflexão de voz típica de um parente, um pedido de ajuda, podemos estar caindo numa ardilosa arapuca. E aqui é importante sempre voltar às bases: no mundo real busca-se evitar a fraude de identidade fazendo o reconhecimento unívoco do interlocutor, com senhas, dados biométricos etc. Parece prudente que esse tipo de constatação seja viável também com a IA. Em outras palavras, a IA se passar por alguém já parece, em si, um caso de fraude de identidade, como ocorreria no mundo analógico se alguém passasse por outro. Um sistema de IA devesse, por construção, deixar claro em qualquer interação que se trata de um ente virtual. Nos velhos filmes de ficção, a voz dos robôs era distintiva. Talvez seja o caso de, sem mexer em suas capacidades atuais, incluir a necessidade de que a auto-identificação seja obrigatória. Afinal quero saber se quem está me aconselhando ou discutindo é meu conhecido amigo, ou uma IA.

De qualquer forma, a corrida pela tecnologia lembrou-me o poema Ítaca, de K. Kaváfis. O caminho para chegar à IA pode ser longo e aventuroso, como foi a busca de Ítaca. E pode ser que, ao chegarmos, encontremos algo bem diferente e abaixo do que esperávamos. Sigamos otimistas e audaciosos: “Ítaca te deu essa beleza de viagem. Nada mais precisa dar”.

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Itaca:

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Sobre IA deixar claro que é "IA":

https://www.schneier.com/blog/archives/2025/02/ais-and-robots-should-sound-robotic.html

We have a simple proposal: all talking AIs and robots should use a ring modulator. In the mid-twentieth century, before it was easy to create actual robotic-sounding speech synthetically, ring modulators were used to make actors’ voices sound robotic. Over the last few decades, we have become accustomed to robotic voices, simply because text-to-speech systems were good enough to produce intelligible speech that was not human-like in its sound. Now we can use that same technology to make robotic speech that is indistinguishable from human sound robotic again.

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O que o ChatGPT reponde à questão:

"Quando a IA responde erradamente, isso se deve ao fato de que ela dá mais prioridade a gerar uma resposta do que de ela estar factualmente baseada?"

Essa é uma excelente pergunta! Quando uma IA, como eu, responde de forma errada, isso pode ser atribuído a vários fatores, e um deles está sim relacionado à priorização da geração de respostas coerentes e fluidas em relação à verificação factual rigorosa. Vamos detalhar os principais motivos:

🚀 1. Priorização da Coerência sobre a Factualidade
Como funciona: Modelos de IA de linguagem, como o meu, são treinados para predizer a próxima palavra com base em padrões de enormes conjuntos de dados. O objetivo principal é criar respostas que "façam sentido" linguisticamente.
O problema: Isso significa que o modelo pode gerar algo que soa plausível, mas que não é necessariamente verdadeiro. A IA não "sabe" se está certa ou errada da mesma forma que um humano saberia após verificar fatos.

🧠 2. Ausência de "Consciência" ou Entendimento Real
Fato importante: A IA não tem entendimento consciente do que está dizendo. Ela trabalha com estatísticas e probabilidades, não com conhecimento real ou compreensão do mundo.
Consequência: Mesmo respostas complexas podem ser baseadas apenas em correlações linguísticas, sem validação de fatos.

📊 3. Limitações no Acesso a Dados Atualizados
Base de treinamento: O conhecimento da IA é limitado aos dados com os quais foi treinada até uma certa data (no meu caso, até 2024, com atualizações via ferramentas da web).
Impacto: Isso pode causar erros em informações que mudam rapidamente, como eventos atuais, estatísticas recentes ou dados em constante evolução.

🔍 4. Falta de Mecanismos de Verificação Interna
O desafio: Embora existam modelos que tentam incorporar verificação de fatos em tempo real, grande parte das IAs de linguagem não "confere" suas respostas contra uma base de dados enquanto gera o texto.
Exceção: Quando uso ferramentas de busca (como agora), posso consultar fontes externas para melhorar a precisão.

🤖 5. Alucinação de IA (AI Hallucination)
Definição: Esse termo se refere ao fenômeno em que a IA gera informações que não têm base na realidade, mesmo que soem convincentes.
Por que acontece: Isso ocorre porque o modelo está otimizado para completar padrões de linguagem, não para validar fatos.

✅ Como Melhorar a Confiabilidade?
Combinação com fontes externas: O uso de APIs de busca, bases de dados verificadas e integração com sistemas de verificação em tempo real ajudam a reduzir erros.
Feedback humano: O aprendizado supervisionado e o feedback dos usuários ajudam a identificar e corrigir padrões de erros.
Modelos especializados: Para áreas críticas (como medicina ou direito), modelos específicos são treinados com foco em precisão factual.

🗣️ Resumo
Em essência, a IA prioriza gerar respostas coerentes, fluidas e contextualmente adequadas, o que nem sempre garante precisão factual. O erro ocorre mais por limitações do modelo e da arquitetura de aprendizado do que por uma "decisão" consciente de ignorar a verdade.
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A poesia citada: Ítaca, de Konstantinos Kaváfis:

ÍTACA - (Trad. Ísis Borges da Fonseca)

Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.

Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
pára em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.

Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.

Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas.
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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Aterro Digital

A vida de uma plataforma digital pode ir do nascimento, como inovação brilhante, a um acúmulo de poder com a adição de usuários e parceiros, depois a uma possível vulgarização de objetivos, concentrando-se basicamente em retorno financeiro. Cory Doctorow propôs, há uns anos, tres fases para uma potência digital: 1- a criação de valor para seus usuários; 2- a criação de valor para seus parceiros e 3- a criação de valor apenas para a plataforma. Para essa terceira fase, esse aventado processo destrutivo descrito em seus textos. ele cunhou o termo “enshittification”, Podíamos arriscar neologismos como “coprificação”, ou “escatificação”; em francês há “emmerdement”. Em artigo desta semana, Ted Gioia comenta o que chamou de “mercantilismo digital”: uma interessante analogia entre o possível ciclo de vida de uma das mais disseminadas plataformas digitais, com o que se passou com a outrora plenipotente Companhia das Indias Orientais que, após dominar metade do mercado mundial no século XVII, teve um fim melancólico.

O provocativo nome que Doctorow escolheu, talvez nos permita uma extrapolação para além das plataformas em si… Afinal, numa primeira vista, parece que a Internet, pelo crescimento inaudito de seus conteúdos, esteja passando pelo mesmo processo vaticinado para as grandes companhias. Com a possibilidade praticamente ilimitada de geração e armazenamento de conteúdos na rede, estamos entrando numa fase em que separar o joio – que cresce esponencialmente – do trigo, torna-se cada vez mais complicado. Se antes uma busca específica na rede nos trazia punhados de opções, hoje a dificuldade de distinguir para onde, de fato, deveriamos nos dirigir, tem aumentado desmesuradamente. Boa parte da culpa pode estar em algoritmos que decidam prioridades, mas também é fato que ninguém apaga nada, mesmo que venha a saber depois que aquilo não fazia sentido. Mal comparando, a “informação” (aqui certamente com aspas!) parece-se com o tal plástico que invade os rios e oceanos: todos reconhecem que é mau, mas sua a produção segue inabalável.

Ainda na linha de Doctorow, ouso tentar expandir seu conceito de “enshittification” para o conjunto do mundo digital em que entramos… Quem sabe estaríamos entrando numa nova era humana, caracterizada pela expansão incontrolável do lixo. Que tal cunhar um nome para esta era: seria o “coproceno”, ou “skatoceno”, a “era do excremento”?. Se esse “aterro digital” seguir, futuros arqueólogos teriam que cavar penosamente através de camadas de sedimentos de “informação” até encontrar substância aproveitável. E não estamos tão longe assim.

Finalmente, e para não cristalizar o pessimismo, pode ser que o uso da IA ajude os “mineradores” nessa triagem, Afinal, ela consegue ler um texto de dezenas de páginas e nos preparar um resumo em segundos. Claro que há outra plêiade de riscos e monstros nos espreitando, mas como disse Nizan Guanaes numa entrevista sobre IA, “a resposta do futuro é a pergunta”. Se soubermos fazer as perguntas certas o futuro será menos difícil.

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Textoa sobre Cory Doctorow
https://edition.cnn.com/2025/01/13/business/enshittification-internet-meta-nightcap/index.html

https://www.eff.org/deeplinks/2024/06/podcast-episode-fighting-enshittification

Texto citado de Ted Gioia
https://www.honest-broker.com/p/google-is-now-the-east-india-company