terça-feira, 22 de abril de 2025

Os rossios digitais

Aproveitando a época que nos leva a recordações, houve nos últimos vinte anos uma coleção de abordagens sobre mudanças que o mundo digital trazia. Palestras de Iochai Benkler na USP, textos de Lessig, de Imre Simon, o conceito de “modernidade líquida” de Zygmund Bauman e outros, trataram, com mais ou menos otimismo, das profundas alterações por que o mundo passa. E um objetivo que parece cada vez mais irreal é tentar um mapeamento entre o mundo digital e o estamento legal e social que tínhamos. Essa busca de ajuste pode nos levar a dois erros: o de tentar classificar as coisas novas ajustado-as aos paradigmas anteriores, ou ao de simplesmente ignorar ou minimizar o que acontece, até por ser difícil de entender por toda sua complexidade.


Destacando algumas das características do “mundo líquido” em que entramos e apontadas por muitos, teríamos: a abundância tomando o lugar da escassez, especialmente ligada à produção praticamente sem custos de informação, de entretenimento e comunicação - a imaterialidade dos novos bens, e o fim do conceito de distância geográfica. Dependendo das condições técnicas de momento na rede, é tão fácil acessar uma base de informação na mesma cidade, como páginas web hospedadas em outro continente. Informação recém gerada ou coletada algures, estará disponível em minutos para o consumo e disseminação geral.

De uma forma algo romantizada, o que a Internet nos trouxe poderia ser visto como um reviver do o conceito de “rossio”, ou de “commons” em inglês. As duas palavras não são totalmente congruentes, mas coincidem em trazer a idéia de “recurso de uso coletivo e livre”. Exemplos históricos seriam a Wikipedia, criada coletivamente e colocada à disposição da comunidade e, numa área mais técnica, a simbiose que gerou sistemas abertos como o Linux e afins. O trabalho voluntário e colaborativo de muitos, pelo mundo, gerou produtos que, de alguma forma, desafiaram os tradicionais, criados dentro de empresas de grande porte e com um corpo técnico muito especializado. Outro exemplo mais recentes dessa ruptura é o surgimento e popularização de tipos de licenças abertas, variadas, os “crative commons”.

Como numa gangorra, sucedem-se momentos de grande otimismo com uma reanálise ácida dos novos riscos trazidos. A idéia do rossio, comum e aberto, não impede que surjam formas de explorá-lo. Somos atraidos a fazer parte de agregados, centrados em plataformas específicas, nos alíviariam da necessidade de buscar ativamente por variedade de informações. Um conforto que pode nos levar a posições passivas e comodistas. No afã de fidelizar usuário, sistemas usam algoritmos que aumentam a sensação de pertencimento: de alguma forma premia-se a permanência do usuário fornecendo-lhe mais daquilo de que ele parece gostar. Se a internet acenou com “commons” onde todos teriam acesso geral a informação e comunicação, o aglutinamento de seus usuários em torno de serviços e plataformas volta a gerar um mundo compartimentado, agora não geograficamente, mas digitalmente. E segue a gangorra. Segundo Bauman, “… na modernidade líquida a única certeza é a incerteza”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/mudancas-digitais-desafiam-paradigmas-sociais-e-legais-da-modernidade-liquida/

https://www.lexico.pt/rossio_2/
Significado de Rossio
m. Terreno, que era roçado ou fruído, em commum, pelo povo. Logradoiro público. Lugar espaçoso; terreiro; praça larga. (Port. ant. ressio V. ressio)





Obituário de J. C. Barlow:
https://www.theguardian.com/technology/2018/feb/11/john-perry-barlow-obituary

Iochai Benkler na USP:
https://www.iea.usp.br/midiateca/apresentacao/riqueza-das-redes-simon/at_download/file

Linux e Imre Simon:
https://br-linux.org/wparchive/2009/morre-imre-simon.php

Lawrence Lessig, e Creative Commons
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Lessig
https://pt.wikipedia.org/wiki/Creative_Commons




terça-feira, 8 de abril de 2025

Bolo com arenque



Em 31 de maio o Comitê Gestor da Internet no Brasil completa 30 anos. O duplo político-técnico, que envolve a operação do .br desde 1989 mais o CGI desde 1995, sempre foi reconhecida mundialmente por sua postura coerente na defesa da Internet e seus princípios originais, a par de um funcionamento técnico de escol.

Em 1995, num mesmo dia, houve a criação do CGI por portaria conjunta do ministro da Ciência e Tecnologia, José Israel Vargas, e do ministro das Comunicações Sérgio Motta, e outra portaria, do ministro Sérgio Motta, estabelecendo o que se conhece como Norma 4. Esse conjunto virtuoso de portarias espelhava o resultado de intenso debate, liderado pela comunidade acadêmica e pela sociedade civil, que, à época, eram os componentes principal da Internet no Brasil. Redes como a do Ibase, ANSP, RNP e os reflexos positivos da Eco-92.

A Norma 4 define “Internet” e conceitos de seu ambiente, como “serviço de conexão”. Já deixava claro então que esses serviços são distintos da “rede de telecomunicação que os suporta”. Ou seja, Internet não é “telecomunicação”. Isso ficou ainda mais sólido quando da promulgação da LGT – Lei Geral de Telecomunicações, em julho de1997, especialmente em seus artigos 60 e 61. O 61, em particular reza: “Serviço de Valor Adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas…”. Note-se o setor de telecomunicações era então estatal, e que a própria Anatel seria criada em novembro do mesmo 1997.

O ambiente úbere criado em 1995, época em que praticamente tudo na Internet era gratuito, permitiu seu rápido crescimento no Brasil. Inicialmente com a migração das BBS (“Bullet Board Systems”) existentes e, logo em seguida, com a entrada em cena de empresas de midia, que criaram seus próprios provedores de acesso e de informação, já em português. O brasileiro não é avesso a novidades, e a aceitação da Internet como nova e ampla forma de comunicação foi célere.

O modelo brasileiro, multissetorial e aberto, tornou-se autossustentável a partir de 1998 e foi saudado como espelho fiel dos princípios originais da internet: abertura, liberdade, inclusão. Vint Cerf, ‘pai da internet’, ressaltou: ‘O CGI.br é uma referência global. A internet deve ser construída com a participação de todos, não apenas de governos ou corporações”. Na mesma linha foi Tim Berners-Lee, e outros de relevo na rede. A dupla virtuosa CGI/NIC, modelo invejado, retorna para a própria rede os recursos privados que recebe, e em 2022 pôde gabar-se de operar em SP o ponto de interconexão com mais tráfego do mundo, além de outros resultados auspiciosos.

Trinta anos depois, esse legado é desafiado por propostas que procuram confundir deliberadamente telecomunicações e serviços de valor adicionado (SVA). O argumento ortogonal de que ‘tarifação igual elimina a necessidade de distinção’ é um sofisma diversionista, um “arenque defumado” (“red herring”) que, partindo de uma questão tributária, busca atacar, de forma enviesada, pilares da governança da Internet.

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Norma 4:

https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/normas-do-mc/78-portaria-148

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LGT:

https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/leis/2-l

Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação.

§ 1º Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza.

§ 2º Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis.

Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

§ 2º É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.