terça-feira, 25 de março de 2025

Attendamus!

 Há uma proliferação de sistemas de Inteligência Artificial à disposição dos usuários curiosos, e é sempre interessante testá-los. Se, por um lado, os resultados obtidos variam bastante, desde convincentes e completos, até claramente insatisfatórios, por outro fica-se com uma eventual “pulga atrás da orelha”: será que eles não estão se copiando? Afinal são sistemas abertos e nada impede que recorram aos concorrentes para montar uma resposta satisfatória.

Vários deles são bastante eloquentes quando solicitados a discorrer sobre pessoas específicas. O interessante é que, em diversos casos, o indigitado não reconheceu situações lá descritas como sendo de sua carreira ou passado… Ou seja, pode haver “biografias não autorizadas” geradas por IA, cujo conteúdo é questionável pelo próprio biografado. Nada de muito diferente do que se passaria no mundo real…

Ainda na área das “pulgas auriculares”, um artigo da DW (Deutsche Welle) - órgão bem estabelecido e com versões em dezenas de linguas - sobre iniciativas de combustível sistético fabricado no Chile com participação da Porsche, é acompanhado de vídeo que mostra veículos subindo os Andes, propelidos pelo novo combustível. Ocorre que, ao final do artigo, há uma singela nota que informa: “este vídeo resumido foi criado por IA a ṕartir de um roteiro original da DW, e foi editado por jornalista antes da publicação”. É louvável que o meio divulgue isso mas, de novo, ficamos sem saber o que é real no vídeo e o que seria sintético. De fato aquele automóvel arrostou as íngremes encostas do Andes, ou é apenas algo gerado sinteticamente…

Temos já aqui dois pontos de atenção: quanto a biografias e descrições, o passado que a IA narra pode ou não ter ocorrido; e quanto aos belos vídeos apresentados, eles podem ser irreais. O primeiro ponto lembra uma frase de autoria debatível (Pedro Malan? Roberto Campos?), que postula “no Brasil até o passado é incerto”. Poder-se-ia reescrever a frase como “na IA até o passado é incerto” – afinal as fontes em que a IA bebeu para gerar sua resposta podem não ser primárias nem confiáveis. Basta estarem disponíveis na Internet. Quanto ao segundo ponto, a liberdade artística mistura-se com a verdade factual e, de novo, fica incerto o que é real e o que é sintético. Uma leitura otimista disso poderia indicar uma volta a padrões artísticos do passado, como o Davi, de Michelângelo, em que a arte superaria esteticamente a própria realidade.

A saída, se é que há uma, é sempre mantermos clara a perspectiva de que estamos vendo um catado de dados, com grande variabilidade de justeza e correção, e retrabalhado por sofisticados mecanismos. Lembrou-se um frase que é bastante repetida em cerimônias do rito cristão oriental, onde o oficiante alerta a comunidade: “estejamos atentos!”. No rito romano reformado, essa instigação desapareceu. Restou, porém, na missa tridentina: o “attendamus!”. Em IA é importante vigiar e triar o que ela nos informa. Seu uso é instigante e cômodo, mas que não nos transforme em conformistas. É vital que “estejamos atentos”.

===
a notícia da Deutsche Welle com o vídeo citado:
https://www.dw.com/en/porsche-tests-e-fuel-in-chiles-mountains/video-71727356

===
sobre Davi, de Michelangelo:
https://pt.wikipedia.org/wiki/David_%28Michelangelo%29









terça-feira, 11 de março de 2025

Deixar herança

Há 30 anos Nicholas Negroponte publicava “A Vida Digital” (“Being Digital”) com o bit assumindo o papel do átomo. Uma transição da economia baseada em átomos (bens físicos) para uma baseada em bits (informação digital), redefinindo indústria, consumo, comportamentos e a própria comunicação. E isso já aconteceu com o suporte físico de livros, música e comunicação, com vantagens óbvias em eficiência, reprodutibilidade, armazenamento e transporte. E novos negócios que prescindem da movimentação de matéria. Como já disse Barlow, “a economia da Internet é mais formada de verbos, que de substantivos”.


O lado, talvez insidioso, do processo é que a base original de informação pode ficar distante. IA contribui para isso: afinal, por que ler um livro na versão original se com a IA consigo um resumo em poucos segundos? Outra referência preocupante surge: o mundo descrito em Fahrenheit 451, ficção de Ray Bradbury, publicada em 1953. Lá os livros são queimados, por perigosos, e sua disseminação e preservação proibidas. A temperatura em que o papel entre em combustão são 451 graus Fahrenheit, mas Bradbury acrescenta que “você não precisa queimar algo para destruí-lo; basta fazê-lo desaparecer da memória das pessoas”, ou seja, a verdadeira destruição residiria no apagamento da memória, na falta de acesso ao conhecimento primário. Se as fontes originais são bloqueadas ou destruidas, tudo pode ser revisto e reescrito conforme a conveniência do poder. O livro destaca a importância das fontes primárias e documentos históricos: o espírito de resistência presente em Fahrenheit 451 faz com que personagens memorizem obras literárias para preservá-las, tornando-se elas mesmo livros vivos.

Se olharmos o cenário hoje, essa ameaça pode não estar tão distante assim. A versão digital de um livro, o “e-book”, pode ser acessada e lida mas, se não puder ser transferida a um dispositivo nosso, o acesso dependerá do provedor. Não só deixamos de possuir o livro, como o que compramos foi apenas o direito de acessá-lo, e esse direito pode eventualmente ser cancelado. Em parte isso já acontece com publicações cientificas: muitas vezes é necessário pagar para acessá-las e esse acesso é revogável se o provedor assim o decidir. Some-se que pode ficar difícil verificar se o que estamos lendo é a versão original, ou algo que colocaram em seu lugar. A analogia segue: ao invés de queimar livros, plataformas podem simplesmente revogar o acesso ao conteúdo digital, apagando-o na prática.

Negroponte prevê um futuro luminoso de integração tecnológica, mas Bradbury nos lembra da importância de preservar nosso passado e nossa identidade. Montag, o protagonista de Fahrenheit 451, cita um conselho de seu avô: "Todos devem deixar algo de herança quando morrem... Algo que sua mão tocou de alguma forma, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer." No mundo digital, essa herança deve incluir não apenas o que está em efêmeros bits, mas também o que preservaremos em átomos para as gerações futuras.

===



Sobre Fahrenheit 451:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451

O romance apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. O personagem central, Guy Montag, trabalha como "bombeiro" (o que na história significa "queimador de livro"). No início, ele aceita seu papel sem questionar, mas, ao longo da narrativa, ele começa a questionar o sistema e a buscar significado em sua vida. Sua transformação é o coração da história, simbolizando a luta pela liberdade de pensamento e a importância do conhecimento.O número 451 é a temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius.

===
Sobre A Vida Digital:

https://seminarioavancado.pbworks.com/f/Negroponte_vida_digital.pdf

"O livro, escrito em 1995, apresenta a visão de Nicholas Negroponte, pesquisador do MIT, sobre as perspectivas de futuro no que se refere ao desenvolvimento da tecnologia digital, apontando, não apenas a tecnologia em si, mas também prevendo modificações nos hábitos pessoais e sociais decorrentes da apropriação desses recursos pela humanidade. Dessas, observamos que muitas podem ser evidenciadas atualmente, algumas se encontram ainda em fase embrionária, enquanto outras foram superadas"

===
Sem mais "downloads"

https://www.theverge.com/news/612898/amazon-removing-kindle-book-download-transfer-usb

===
O Projeto 451:

https://www.racket.news/p/introducing-project-451