Há 30 anos Nicholas Negroponte publicava “A Vida Digital” (“Being Digital”) com o bit assumindo o papel do átomo. Uma transição da economia baseada em átomos (bens físicos) para uma baseada em bits (informação digital), redefinindo indústria, consumo, comportamentos e a própria comunicação. E isso já aconteceu com o suporte físico de livros, música e comunicação, com vantagens óbvias em eficiência, reprodutibilidade, armazenamento e transporte. E novos negócios que prescindem da movimentação de matéria. Como já disse Barlow, “a economia da Internet é mais formada de verbos, que de substantivos”.
O lado, talvez insidioso, do processo é que a base original de informação pode ficar distante. IA contribui para isso: afinal, por que ler um livro na versão original se com a IA consigo um resumo em poucos segundos? Outra referência preocupante surge: o mundo descrito em Fahrenheit 451, ficção de Ray Bradbury, publicada em 1953. Lá os livros são queimados, por perigosos, e sua disseminação e preservação proibidas. A temperatura em que o papel entre em combustão são 451 graus Fahrenheit, mas Bradbury acrescenta que “você não precisa queimar algo para destruí-lo; basta fazê-lo desaparecer da memória das pessoas”, ou seja, a verdadeira destruição residiria no apagamento da memória, na falta de acesso ao conhecimento primário. Se as fontes originais são bloqueadas ou destruidas, tudo pode ser revisto e reescrito conforme a conveniência do poder. O livro destaca a importância das fontes primárias e documentos históricos: o espírito de resistência presente em Fahrenheit 451 faz com que personagens memorizem obras literárias para preservá-las, tornando-se elas mesmo livros vivos.
Se olharmos o cenário hoje, essa ameaça pode não estar tão distante assim. A versão digital de um livro, o “e-book”, pode ser acessada e lida mas, se não puder ser transferida a um dispositivo nosso, o acesso dependerá do provedor. Não só deixamos de possuir o livro, como o que compramos foi apenas o direito de acessá-lo, e esse direito pode eventualmente ser cancelado. Em parte isso já acontece com publicações cientificas: muitas vezes é necessário pagar para acessá-las e esse acesso é revogável se o provedor assim o decidir. Some-se que pode ficar difícil verificar se o que estamos lendo é a versão original, ou algo que colocaram em seu lugar. A analogia segue: ao invés de queimar livros, plataformas podem simplesmente revogar o acesso ao conteúdo digital, apagando-o na prática.
Negroponte prevê um futuro luminoso de integração tecnológica, mas Bradbury nos lembra da importância de preservar nosso passado e nossa identidade. Montag, o protagonista de Fahrenheit 451, cita um conselho de seu avô: "Todos devem deixar algo de herança quando morrem... Algo que sua mão tocou de alguma forma, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer." No mundo digital, essa herança deve incluir não apenas o que está em efêmeros bits, mas também o que preservaremos em átomos para as gerações futuras.
O romance apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. O personagem central, Guy Montag, trabalha como "bombeiro" (o que na história significa "queimador de livro"). No início, ele aceita seu papel sem questionar, mas, ao longo da narrativa, ele começa a questionar o sistema e a buscar significado em sua vida. Sua transformação é o coração da história, simbolizando a luta pela liberdade de pensamento e a importância do conhecimento.O número 451 é a temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius.