A vida de uma plataforma digital pode ir do nascimento, como inovação brilhante, a um acúmulo de poder com a adição de usuários e parceiros, depois a uma possível vulgarização de objetivos, concentrando-se basicamente em retorno financeiro. Cory Doctorow propôs, há uns anos, tres fases para uma potência digital: 1- a criação de valor para seus usuários; 2- a criação de valor para seus parceiros e 3- a criação de valor apenas para a plataforma. Para essa terceira fase, esse aventado processo destrutivo descrito em seus textos. ele cunhou o termo “enshittification”, Podíamos arriscar neologismos como “coprificação”, ou “escatificação”; em francês há “emmerdement”. Em artigo desta semana, Ted Gioia comenta o que chamou de “mercantilismo digital”: uma interessante analogia entre o possível ciclo de vida de uma das mais disseminadas plataformas digitais, com o que se passou com a outrora plenipotente Companhia das Indias Orientais que, após dominar metade do mercado mundial no século XVII, teve um fim melancólico.
O provocativo nome que Doctorow escolheu, talvez nos permita uma extrapolação para além das plataformas em si… Afinal, numa primeira vista, parece que a Internet, pelo crescimento inaudito de seus conteúdos, esteja passando pelo mesmo processo vaticinado para as grandes companhias. Com a possibilidade praticamente ilimitada de geração e armazenamento de conteúdos na rede, estamos entrando numa fase em que separar o joio – que cresce esponencialmente – do trigo, torna-se cada vez mais complicado. Se antes uma busca específica na rede nos trazia punhados de opções, hoje a dificuldade de distinguir para onde, de fato, deveriamos nos dirigir, tem aumentado desmesuradamente. Boa parte da culpa pode estar em algoritmos que decidam prioridades, mas também é fato que ninguém apaga nada, mesmo que venha a saber depois que aquilo não fazia sentido. Mal comparando, a “informação” (aqui certamente com aspas!) parece-se com o tal plástico que invade os rios e oceanos: todos reconhecem que é mau, mas sua a produção segue inabalável.Ainda na linha de Doctorow, ouso tentar expandir seu conceito de “enshittification” para o conjunto do mundo digital em que entramos… Quem sabe estaríamos entrando numa nova era humana, caracterizada pela expansão incontrolável do lixo. Que tal cunhar um nome para esta era: seria o “coproceno”, ou “skatoceno”, a “era do excremento”?. Se esse “aterro digital” seguir, futuros arqueólogos teriam que cavar penosamente através de camadas de sedimentos de “informação” até encontrar substância aproveitável. E não estamos tão longe assim.
Finalmente, e para não cristalizar o pessimismo, pode ser que o uso da IA ajude os “mineradores” nessa triagem, Afinal, ela consegue ler um texto de dezenas de páginas e nos preparar um resumo em segundos. Claro que há outra plêiade de riscos e monstros nos espreitando, mas como disse Nizan Guanaes numa entrevista sobre IA, “a resposta do futuro é a pergunta”. Se soubermos fazer as perguntas certas o futuro será menos difícil.
Textoa sobre Cory Doctorow
https://edition.cnn.com/2025/01/13/business/enshittification-internet-meta-nightcap/index.html
Texto citado de Ted Gioia
https://www.honest-broker.com/p/google-is-now-the-east-india-company