terça-feira, 27 de agosto de 2024

Presságios semânticos

 Fevereiro de 1996, em momento de discussão sobre conteúdos “não adequados para plataformas de comunicações”, John Perry Barlow (que em 1990 fundara a EFF- Electronic Frontier Foundation), escreveu a “Declaração de Independência do Ciberespaço” como resposta imediata ao “Decency Act” norte-americano. É um texto que repete o espírito fundante dos pioneiros da Internet e, claro, sua utopia da permanente revolução que ela seria capaz de promover no mundo. “Nosso mundo está, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em lugar nenhum, mas não é onde pessoas vivem. Estamos criando um mundo em que todos poderão entrar, sem privilégios ou preconceitos de raça, poder econômico, força militar ou lugar de nascimento. Um mundo onde qualquer um, em qualquer lugar, poderá expressar suas opiniões…”. Barlow, que nos deixou em 2018 e visitou o Brasil algumas vezes, não pôde presenciar o reviver da velha polêmica de 1996.

Certamente coisas mudam e conceitos devem ser revistos mas, como observador do cenário, noto que, às vezes, discussões são distorcidas para atender a objetivos enviesados. Cito dois casos: “liberdade de expressão” é algo fundamental, o que não quer dizer, em absoluto, que não devamos ser responsáveis pelo que afirmamos. Não se trata de impedir a expressão, mas de punir o enunciante, se o que disse configura-se “crime” na legislação em que vive. O esforço para que não se diga algo parece-me inútil e inafequado, e assim também é pedir ao meio que se recuse a receber idéias que ele considere nefastas. Se o papel aceita quaisquer idéias que um lápis coloque lá, isso não significará impunidade a quem usou da liberdade para disseminar calúnias, difamações. Com a Internet é muito difícil alguém escrever algo sem deixar traços que o denunciem. O outro exemplo é no sentido contrário: não entendo, em minha limitação, o que significaria o “direito ao esquecimento”… Alguém teria o direito, sobre a mente dos demais, para que algo fosse esquecido? Claro que se algo falso e superado for utilizado contra alguém, que o arcabouço legal puna o agressor. Tentar fazer isso preventivamente parece-me pretencioso e abusivo.

Finalmente, no tema “fronteiras”, há que se respeitar culturas locais que, por vezes, podem ser bem diversas. Querer que o mundo siga numa linha definida por um bloco, por mais evoluido que ele se considere, parece abusivo. A “longa manus” da UE em relação ao “direito ao esquecimento” não deveria atingir outros domínios nacionais. O princípio de Barlow, de não haver tutela e filtros apriorísticos, ainda deveria valer. E que cada um se responsabilize pelo que publicou.

Entretanto o demônio, sempre atento, ouviu Barlow e se aproveitou de um escorregão no título… Ao denominar o espaço de interlocução e de comunicação de “ciberespaço”, foi usada a raiz grega “ciber”, que significa controle, governança. Ou seja, sem notar, Barlow conjurara os espíritos maliciosos para que pudessem transformar a Internet inicial numa “rede de controle”. A semântica buscou (e conseguiu!) sua vingança.

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"Cyber"
https://www.tripwire.com/state-of-security/humanity-and-evolution-of-cyber



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O livro de Norbert Wiener, que definiu "cibernética"
https://en.wikipedia.org/wiki/Cybernetics:_Or_Control_and_Communication_in_the_Animal_and_the_Machine

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Tecnologia e verdade

A facilidade que a internet nos deu para receber e gerar uma infinidade de informações, trouxe-nos preocupação cada vez maior com a qualidade do que recebemos. E intriga-nos, também, por que algo específico e não solicitado chega. Certamente há algoritmos em ação, que nos catalogaram como alvos de temas que nos interessariam. Buscam manter-nos conectados, o maior tempo possível, nas tais “bolhas de conteúdo”.

Se cresce a informação que um destinatário recebe, o mesmo acaba acontecendo com falsidades e desinformação. Para tratar disso, evitemos cair na armadilha dicotômica, maniqueista, que visa a separar o verdadeiro do falso: é uma empreitada impossível. Em relação a conhecimento científico, bom lembrar Karl Popper, que define ciência como algo que, necessariamente, pode ser “falseado”. Se não se admite argumentação contrária, estamos diante de um “dogma” e não de uma proposta científica. O exemplo mais extremo talvez seja “o ministério da verdade”, da obra de Orwell, “1984”. A verdadeira ciência vale-se do questionamento para provar-se continuamente sólida ou, até, reconhecer eventualmente que algo deva ser revisto.

Uma discussão recente trouxe à baila posicionamentos de Amós Óz, literato e filósofo israelense, que sustenta ser a verdade um alvo móvel. Dela só conseguimos nos aproximar a partir de debates abertos e variados (mais ou menos na linha do velho adágio “da discussão nasce a luz”). No tema “verdade”, Nietzsche, mais radical que a Oz, afirmou que “não existem fatos; apenas interpretações de fatos”. Ambos, portanto, consideram “verdade” não como um dado objetivo e absoluto, mas uma construção humana, influenciada por perspectivas, experiências e valores. Um ideal a ser perseguido, mesmo que nunca completamente alcançado. Da discussão aberta, do diálogo, de buscar pontes entre diferentes visões. é que se chegará a resultados úteis.

A internet deu armas a oportunistas que lançam mão de ferramentas da tecnologia para disseminar, não argumentos honestos em que creiam, mas falsidades intencionais, que reforcem narrativas de seu interesse. Independentemente de nossa definição de “verdade”, é importante distinguirmos entre o salutar e aberto debate, e a imposição insidiosa de dogmas. Manter posição crítica sobre o que recebemos, e exercer contenção no que repassamos, evitará que nos tornemos apoio involuntário aos que buscam disseminar algo de seu próprio interesse. É fundamental desenvolver pensamento crítico, avaliar a credibilidade da informação. Isso inclui reconhecer nossos próprios viéses, e considerar diferentes perspectivas antes de disseminar uma opinião.

Em grego a palavra “verdade” é “alétheia”, que significa “a negação do esquecimento” - Lete é o nome do “rio do esquecimento” no Hades. Segundo Martin Heidegger, “verdade é o desvelar, revelar o que está oculto”. Numa frase dele, “a essência da verdade é a liberdade”.

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Um ensaio bastante bem feito, por IA, sobre o tema:
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A Ilusão da Verdade: Oz, Câmeras e "Deepfakes" em um Mundo Digital

Amos Oz, em sua profunda reflexão sobre a natureza humana e a busca pela verdade, nos convida a questionar a própria noção de realidade. Para o escritor israelense, a verdade é um ideal perseguido, mas raramente alcançado. A complexidade da experiência humana, a subjetividade da percepção e a influência do contexto histórico e cultural tornam a verdade um constructo fluido e mutável.

No mundo contemporâneo, essa noção de verdade se torna ainda mais complexa com o avanço da tecnologia. As câmeras fotográficas, por muito tempo consideradas testemunhas imparciais da realidade, revelam-se cada vez mais como instrumentos de construção de narrativas visuais. A fotografia, assim como a pintura ou a escultura, é um ato de seleção e composição, que molda a percepção do espectador. A imagem capturada por uma câmera não é uma reprodução fiel da realidade, mas sim uma interpretação dela, filtrada pelas lentes do fotógrafo e pelas características da própria câmera.

A ascensão dos "deepfakes" agrava ainda mais essa crise de confiança na imagem. Essas falsificações digitais, capazes de criar vídeos hiper-realistas de pessoas dizendo ou fazendo coisas que nunca fizeram, desafiam nossa capacidade de distinguir o real do falso. As "deepfakes" não apenas questionam a autenticidade das imagens, mas também minam nossa confiança nas instituições e nos indivíduos que aparecem nesses vídeos.

A relação entre as ideias de Oz, a fotografia e os "deepfakes" pode ser resumida da seguinte forma:

  1. A verdade como construção: Assim como a verdade para Oz não é um dado objetivo, mas uma construção social e histórica, as imagens fotográficas e os "deepfakes" também são construções, moldadas por tecnologias, intenções e contextos específicos.

  2. A ilusão da objetividade: A câmera fotográfica, assim como a linguagem, cria a ilusão de objetividade, mas essa objetividade é sempre relativa e dependente de diversos fatores.

  3. A importância do contexto: A interpretação de uma imagem ou de um vídeo depende do contexto em que ela é inserida. A mesma imagem pode ter significados completamente diferentes dependendo de quem a produz, para quem ela é destinada e em qual momento histórico ela é apresentada.

  4. A necessidade de criticidade: Diante da proliferação de imagens e vídeos manipulados, torna-se cada vez mais importante desenvolver um lhar crítico e questionador, capaz de identificar as estratégias de manipulação e as intenções por trás das mensagens visuais.

Em conclusão, as ideias de Amos Oz sobre a verdade, quando confrontadas com o poder de manipulação das imagens digitais, nos levam a refletir sobre a natureza da realidade e a importância da crítica e do pensamento autônomo em um mundo cada vez mais mediatizado. A busca pela verdade, longe de ser um exercício ingênuo, exige um esforço constante de desconstrução das narrativas dominantes e de construção de um olhar mais crítico e informado sobre o mundo que nos cerca.

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