Utopias e distopias
A Internet que conhecemos passou por várias inflexões em seu caminho, e muito provavelmente vários de seus precursores estranhariam o tipo de discussões e problemas que se debatem hoje. A data clássica de ativação da rede marcou-se em outubro de 1969 (o mesmo ano de Woodstock!) e o primeiro grande passo foi a adoção do TCP/IP em 1982. Lembremos que os governos tinham em vista outra suite de protocolos para redes de computadores: o modelo OSI/ISO, criado pela ITU e que geraria uma estrutura bastante hierarquizada. Quando, em 1986, a rede científica norte-americana NSFNET adotou o TCP/IP, com o expressivo apoio da comunidade tecno-acadêmica, ele tornou-se um “padrão de direito”. As características originais da Internet: uma rede distribuida, sem um ˜centro de controle˜, aberta a todos, construida pela adesão voluntária de milhares de redes autônomas pelo mundo, e sem reconhecer as fronteiras nacionais, encontrariam sua expressão máxima em 1996, quando J. P. Barlow escreveu a ˜Declaração de Independência do Ciberespaço”. Havia nos EUA à época, uma proposta de legislação para controlar o conteúdo na rede – o Decency Act – e foi reagindo a isso que Barlow encabeçou a posição da “comunidade Internet”. A tal lei acabou sendo revista, com a adoção da sessão 230, que aliás foi reafirmada há pouco tempo na Suprema Corte norte- americana. A “Declaração” de Barlow foi o coroamento do conceito de “rede aberta e livre”, com a descrição, nas palavras de Barlow, de uma comunidade literalmente utópica, e a proposta de um “mundo da Mente”.Rever o que Barlow descreve em seu repto e confrontá-lo com o que temos, talvez nos fizesse reler o título “mundo da Mente” para “o mundo que mente”. Diz ele “… Estamos criando um mundo em que qualquer pessoa possa entrar sem privilégio ou preconceito baseado em raça, poder econômico, força militar ou local de nascimento. Estamos criando um mundo em que qualquer pessoa, em qualquer lugar, possa expressar suas crenças, por mais singulares que sejam, sem medo de ser coagida ao silêncio ou à conformidade…. Criaremos uma civilização da Mente no Ciberespaço. Que ela seja mais humana e justa do que o mundo que seus governos criaram antes - Davos, Suíça, 8 de fevereiro de 1996”. Quando disso vale, quanto é utopia e quanto passou a ser distopia?
E, adicionando a indefectível pitada de IA no caldo da Internet, há um outro ponto que chama a atenção: a possibilidade de retrabalhar o passado é reforçada! Explico: houve em Brasília uma exposição sobre a história da cidade, que contou com o apoio instrumental da IA. Não visitei a exposição, portanto não tenho base de julgamento, mas surgiu uma dúvida: seria confiável a reedição automatizada da história? Há diversos exemplos de contextos que são mal-entendidos pela IA (concedendo que IA “entenda” contextos…), mas o que desperta alguma preocupação é que, sem formas de verificação independente (ou sem paciência e tempo para isso), estariam os consumidores das versões sintética da história correndo riscos maiores de manipulação? Será que, mergulhados como estamos hoje no mar de desinformação e de “fake news”, veremos aparecer também a onda dos “fake olds”?
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O texto do J. P. Barlow:
https://www.eff.org/cyberspace-independence
https://www.eff.org/deeplinks/2018/02/john-perry-barlow-internet-pioneer-1947-2018
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