Se hoje a tecnologia avança em passos de sete léguas, o mesmo progresso não parece haver no componente humano. Pode ser que seja aturdimento pelo ambiente mutável, ou deslumbramento pelas possibilidades que se abrem, mas é difícil saber se o novo estado de coisas gera no espírito humano progresso, estagnação ou, até mesmo, involução.
Enquanto ouvia um baixo cantando a famosa ária da calúnia do Barbeiro de Sevilha, veio-me um lampejo: naquela ária, Dom Basílio, professor de canto de Rosina, filha do Dr. Bartolo, aconselha-o a usar da calúnia como forma de frear os avanços de um intrometido pretendente à filha. Permito-me traduzir toscamente trechos da ária em questão: “A calúnia é uma brisa gentil, que começa sutilmente e vai ganhando corpo. Com destreza entra pelas orelhas das pessoas e as faz desconfiar. Depois, com força redobrada, sai de suas bocas e vai ganhando energia até se tornar um trovão, uma tempestade. Como um tiro de canhão que ressoa pelos ares, a calúnia cria um tumulto geral. E a pobre vítima, caluniada, aviltada, espezinhada, ainda terá alguma sorte se morrer em tempo…”.Não parece muito diferente em essência do que acontece hoje, especialmente com a chamada “cultura do cancelamento” nas redes sociais. Se Dr. Bartolo quisesse hoje denegrir o conceito do tal pretendente, teria muita facilidade para seguir os conselhos de Don Basílio: bastaria colocar algo bombástico na rede, e seus seguidores - admiradores ou não - fariam o serviço de amplificar e espalhar a notícia, num crescendo como no descrito na ária. Epa! Há aí um enorme erro de escala e de tempo: ao invés da calúnia se espalhar das bocas às orelhas, até atingir toda população local, com a rede hoje a coisa se espalha a partir dos influenciadores e seus seguidores, e em horas arregimenta milhões de prosélitos. Do ponto de vista da essência humana, pode não haver “nada de novo sob o sol” mas, com a amplificação e velocidade imprimidas pela tecnologia, o “tumulto geral” que Dom Basílio intentava chegará hoje numa ínfima fração de tempo.
E agora Dom Basílio ganhou um aliado: a IA com suas habilidades de gerar textos escorreitos e críveis, mesmo que factualmente inseguros. Ainda temos algum discernimento que permita distinguir o que pareça inverdade ou invencionice, mas conseguiremos sobrenadar, ou entregaremos os pontos? Até porque é cômodo assumir o resumo que o GPT nos entrega sobre algum tópico ou tema. Sem alarmismos nem euforia, há que se reconhecer que estamos nos metendo em “terra incógnita”. Conversando com um amigo sobre a qualidade das respostas da IA e seu efeito nos humanos, ele ponderou aguda e ironicamente: “ da leitura dos clássicos, passamos à leitura de adaptações, releituras, e até versões em quadrinhos. Agora temos a IA que escreve texto, resumindo o que seleciona. Fala-se no risco de a IA vir dar causa à extinção da humanidade. Parece que estamos trabalhando bastante para que essa perda seja mínima...”
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https://www.youtube.com/watch?v=CtFmBK6C_Mw
https://www.opera-arias.com/rossini/il-barbiere-di-siviglia/la-calunnia-e-un-venticello/
La calunnia è un venticello, / Calumny is a little breeze,
che insensibile, sottile, / which insensibly, subtly,
leggermente, dolcemente, / lightly and sweetly,
incomincia a sussurrar. / commences to whisper.
Piano piano, terra terra, / Softly softly, here and there,
sottovoce, sibilando, / sottovoce, sibilant,
va scorrendo, va ronzando; / it goes gliding, it goes rambling,
nelle orecchie della gente / into the ears of the people,
s'introduce destramente, / it penetrates slyly
e le teste ed i cervelli / and the head and the brains
fa stordire e fa gonfiar. / it stuns and it swells.
Dalla bocca fuori uscendo / From the mouth re-emerging
lo schiamazzo va crescendo, / the noise grows crescendo,
prende forza / gathers force
a poco a poco, / little by little,
vola già di loco in loco; / runs its course from place to place,
sembra il tuono, la tempesta / seems the thunder of the tempest
che nel sen della foresta / which from the depths of the forest
va fischiando, brontolando / comes whistling, muttering,
e ti fa d'orror gelar. / freezing everyone in horror.
Alla fin trabocca e scoppia, / Finally with crack and crash,
si propaga, si raddoppia / it spreads afield, its force redoubled,
e produce un'esplosione / and produces an explosion
come un colpo di cannone, / like the outburst of a cannon,
un tremuoto, un temporale, / an earthquake, a whirlwind,
un tumulto generale, / a general uproar,
che fa l'aria rimbombar. / which makes the air resound.
E il meschino calunniato, / And the poor slandered wretch,
avvilito, calpestato, / vilified, trampled down,
sotto il pubblico flagello / sunk beneath the public lash,
per gran sorte a crepar. / by good fortune, falls to death.
O Barbeiro de Sevilha – revistas.usp.br
https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/download/148722/148170/317195
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https://es.wikipedia.org/wiki/La_calunnia
Fiódor Ivánovich Chaliápin, como Don Basílio, 1912
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