Segue a inescapável discussão sobre formas de proteger nossos dados pessoais, mas podendo usá-los racionalmente quando se tratar de interações e transações seguras. Os atores principais nesse processo são as construções feitas sobre a rede que, com seus méritos e suas mazelas, proporcionam-nos experiências da informação, comunicação e do novo comércio.
Em artigo recente, outro aspecto preocupante desse labirinto de dados foi evidenciado nos comentários durante a audiência pública sobre o estado da aquisição e agregação dos dados de usuários de plataformas. Dois dos principais engenheiros de importante operadora reconheceram que, mesmo com todo o suporte técnico, é muito difícil para eles apontar com exatidão tudo o que o sistema sabe sobre alguém. A própria ferramenta colocada à disposição dos usuários para que saibam das informações que o sistema tem sobre eles é insuficiente: há dados individuais que a ferramenta não identifica. Mesmo os responsáveis pelo sistema não conseguem apontar todos os dados de alguém, embutidos no emaranhado de informações coletadas ou inferidas. Eles reconheceram, aliás, um problema algo comum em sistemas informáticos complexos, criados rapidamente a muitas mãos: sequer há documentação completa sobre os módulos desenvolvidos: a única maneira de avaliar a potência e as características finas de funcionamento do sistema é a análise do próprio código escrito. A enorme quantidade de informação recolhida ou inferida pode ser inadministrável...No conto de Jorge Luis Borges, “Funes, o Memorioso”, essa ilimitada capacidade de memorização é tratada de forma muito criativa. É a curta história de Irineu Funes, que após ficar paraplégico numa queda de cavalo, adquire a capacidade de memorizar absolutamente tudo. Funes, por exemplo, é capaz de descrever o que aconteceu num dia qualquer, minuto a minuto. Claro que, na própria descrição se gastará outro dia inteiro. Para Funes, cada objeto, pedra, folha, número, teria um nome próprio específico; “perturbava-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente)”. Diz-se que Ciro, rei dos persas, referia-se a cada um de seus milhares de soldados pelo próprio nome…
É fato que a internet, suas ferramentas e as construções que nela existem nos trouxeram um mundo em que, não apenas nada é esquecido, como podemos recuperar instantaneamente coisas de cuja existência sequer suspeitávamos. Mergulhados nesse infinito mar de dados e informações, não distinguimos o importante do fútil, o essencial do anedótico, o real do imaginado. Os que estudam a evolução do comportamento humanos deveriam fazer um esforço concentrado para examinar que inesperadas e incontroláveis consequências isso trará. Diz o próprio Borges: “somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos quebrados”.
O caso citado da plataforma:
https://theintercept.com/2022/09/07/facebook-personal-data-no-accountability/
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Memória e Borges:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160207_vert_fut_super_memoria_ml
https://super.abril.com.br/ciencia/dez-animais-classicos-criados-pela-imaginacao-humana/
https://globalherit.hypotheses.org/1440 (Pedro Pereira Leite):
"... soube que formava o primeiro parágrafo do capítulo XXIV do livro sétimo da 'Naturalis historia'. O assunto desse capítulo é a memória, as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.” .<...> A frase latina, escrita com precisão da memória contem um paradoxo. Em castelhano (e também em português), ao dizermos que “nada que tenhamos ouvido, não pode repetir-se com as mesmas palavras” afirmamos uma impossibilidade."
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