terça-feira, 5 de julho de 2022

A dose crítica

Um conhecido aforismo atribuido a Paracelso, médico suiço no século XV, nos alerta: é na dosagem que se definirá quando um remédio torna-se veneno. Há em muitos países uma corrida para aliviar “males que provêm da internet”. As diversas abordagens parecem ter em comum a busca de regulação que atue como “remédio” e é exatamente daí, de propostas bem intencionadas mas não testadas extensivamente que o “veneno” pode se instilar trazendo riscos para a internet que conhecemos.

Por um lado há debates amplos e multisseriais, como os que ocorrem nos IGF (Internet Governance Fórum); por outro, legislações nacionais avançam açodadamente em processos nada tímidos de regulação. Sobre o caso europeu, Konstantinos Komaitis, veterano defensor de uma internet global a aberta, traz em artigo no politico.eu pontos interessantes: já em 2018, no discurso que o presidente Macron fez no IGF de 2018, em Paris, ele defendeu que se buscasse uma alternativa a: 1- uma internet totalmente solta (uma referência ao poder da tecnologia norte-americana), ou 2- uma internet compartimentada sob controle de países específicos (o caso chinês). Para Macron, a terceira via seria uma internet regulada em moldes que a Europa proporia, escapando do modelo totalmente aberto original, mas sem cair no modelo chinês. Quatro anos depois a Europa caminha celeramente nesta direção.

Komaitis aponta aqui o que seria o verdadeiro problema: a falha teria sido predominantemente de controle do mercado, não da internet em si. A enorme concentração de poder de mercado originou boa parte dos problemas, e atacar apenas as consequências sem olhar para todas as causas pode ser tiro no escuro.

Em relação à maré de propostas de regulação européia, Komaitis ressalta que, a despeito dos progressos que a agenda regulatória européia tem conseguido em tópicos como privacidade, dados, conteúdos, segurança e outros, no debate sobre internet sente-se falta de participação de todos os segmentos. “A regulação européia, por agora, é principalmente orientada por um conjunto de atores poderosos: o lobby do ‘copyright’, as ‘big techs’ e as operadoras de telecomunicações, enquanto a sociedade civil luta para ser ouvida”, continua. “E mesmo sabendo que valores europeus são um grande capital, não se podem esquecer os da própria internet”, e cita a polêmica proposta de criação de um DNS central europeu. Alerta que extrapolar valores europeus para toda a internet pode ser uma forma de cair numa “armadilha à chinesa”: tentar enquadrar a rede toda num quadro de valores regional, por melhores que eles sejam. “A Europa poderia estar promovendo uma internet que ofereça o melhor dos dois mundos: onde exista regulação, mas sem comprometer valores originais da rede”. 

Que a dose do remédio sendo aviado não o transforme em veneno…

===
O artigo citado, e trecho:
https://www.politico.eu/article/eu-internet-regulation-falling-into-china-trap/

"Finally, the Internet is the by-product of collaboration among a diverse set of people, representing different interests. Europe’s regulation, so far, is mainly driven by a range of powerful actors — the copyright lobby, big tech or traditional telecommunication providers — and civil society continues to struggle to be heard".

===
Sobre Paracelso e a dosagem de remédio

https://pt.wikipedia.org/wiki/Paracelso
https://drasuzanavieira.med.br/2018/05/19/a-dose-faz-o-veneno
"Em dúvida, abstenha-se de intervir – Primun non nocere – um aforismo bem conhecido e um dos princípios adotados pelo movimento Slow Medicine."

https://pt.wikipedia.org/wiki/Primum_non_nocere










Nenhum comentário: