Terça-gorda de um ano atípico numa época difícil. É Carnaval. Os três dias a que a imprensa se referia como “triduo momesco”. Chaves da cidade entregues ao rei Momo, foliões nas ruas, e o deprimente espetáculo da “resistência carnavalesca”, onde os que se mantivessem pulando por mais tempo, vigiados pela TV, receberiam um prêmio. Lembra-me o livro “Mas não se matam cavalos?” que pungentemente tratava do tema. Evoé!, invocação hoje com bastante cheiro de naftalina, também remonta aos velhos carnavais.
O carnaval representa a oportunidade de o indivíduo se dissolver na multidão, liberto de amarras e dos limites. Evoé! O chamado ao dionisíaco que nos espreita lá do fundo e anseia sair. Essa necessidade também pode estar sendo suprida via Internet, mas com resultados diferentes, talvez inesperados. O indivíduo pode dissolver-se facilmente na multidão virtual das redes que o abraçam e, dentro delas, soltar sua voz como tantos outros. Sendo carnaval é ainda mais válido usar-se máscara, travestir-se do que se queira, e deixar-se levar por qualquer euforia que esteja à mão, sem muito pensar ou escolher. Aliás, na Internet, como na Covid, é usual que se usem máscaras, claro que com diferente objetivo.
As raízes do atual Carnaval estão na Idade Média, relacionadas ao início da Quaresma: ele representa a última oportunidade de saciar-mo-nos de carne, antes do jejum que segue. Mas há conexões mais bem mais antigas, que remontam aos ritos dionisíacos. Beber e dançar até atingir o êxtase da liberação, e assim participar de orgias eram características que, em formas atenuadas, ainda se reconhecem. Mas as celebrações iam além. Nos momentos de maior excitação, as bacantes, mulheres consagradas aos mistérios de Dioniso/Baco, deveriam estraçalhar ritualisticamente, com as próprias mãos nuas, uma vítima escolhida. O avanço da civilização, já mesmo na Grécia antiga, proscreveu esse bárbaro costume e, certamente, não veremos retalhamentos nos festejos carnavalescos. A Internet, entretanto, sempre surpreender e, seja carnaval ou não, pode ignorar freios que a civilização impôs a comportamentos. Sem sangue, linchamentos virtuais tendem a ser cada vez menos raros. O carnaval medieval, do entrudo e das brincadeiras licenciosas, pode acabar dando lugar, de novo, a modernas bacantes de Dioniso. Nos casos historicos, quando a multidão agia para linchar alguém, necessitava-se de um pretexto real ou armado, e de um “puxador do samba”, aquele que atirará a “primeira pedra”. Esse deflagrador do processo carregaria em sua consciência o peso de ter gerado o apedrejamento, e isso funcionava como uma barreira de inibição. Com as redes sociais e o tumulto que nelas impera, fica praticamente impessoal atirar a primeira pedra e sumir na multidão. A responsabilização estará diluida e a barreria de responsabilidade eliminada. As bacantes virtuais poderão assim começar o estraçalhamento sem muitas culpas a carregar. Já a quarta-feira de cinzas não parece ter mantido seu sentido...
===
Sobre a "primeira pedra:
em: "Eu vi Satanás cair como um relâmpago", de René Girard:
https://www.dicionarioetimologico.com.br/evoe/
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/2083400
https://pt.wikipedia.org/wiki/Baco
===
"O Sagrado e o Profano: A Essência das religiões", de Mircea Eliade
Nenhum comentário:
Postar um comentário