terça-feira, 31 de agosto de 2021

Cambalache

No álbum branco de Caetano Veloso, 1969, há a faixa que Gardel já havia gravado, Cambalache, letra e música de Enrique Discépolo. Adolescentes, ouvíamos com um sorriso a música cantada em espanhol contendo mensagem bastante crítica ao estado de coisas, mas sem ter a menor noção de que sua feroz ironia poderia perder totalmente a graça uns 50 anos depois…

Daí, constato que sou velho - o que em si não é uma má notícia, tendo em vista as alternativas… Entre os inúmeros indícios da idade, posso começar, por exemplo, pelo meu desconforto com leituras amplas do que seja “arte”. Exemplifico com “a fonte”, ou o “urinol” de Duchamp, que é de 1917 e anterior a Cambalache. Claro que não sou competente para comentar tecnica ou artisticamente isso mas, definitivamente, não cai no meu gosto. Reconheço grande criatividade na obra, mas creio que estaria melhor numa categoria de “humor” ou “crítica”, que em “escultura” (aliás, as “sete artes” originais ainda seriam sete?).

A conexão com Cambalache veio ao ler uma notícia nesta semana, informando que um garoto de 12 anos conseguiu arrecadar uma pequena fortuna vendendo NFTs (“Non-Fungible Tokens”) na Internet. NFT poderia ser traduzido para “objeto insubstituível” mas, porque alguém pagaria para ter um? A pulsão humana em colecionar coisas não é novidade, e deve ser vestígio de nossa fase de caçadores-coletores. Quem sabe foi ela que nos levou a colecionar selos, moedas e outros produtos do artifício humano, mas aqui há, também, o perigo de extrapolações mais difíceis de explicar. Lembro, por exemplo, de um artista italiano no início dos anos 60, cuja “pièce de résistance” era uma coleção de latas, numeradas e datadas, contendo... fezes humanas. A obra chamou-se “Merde d’Artiste” e há exemplares ainda à venda, na Internet…

Como humor, como charge e como contestação, seria perfeito. Como arte, entretanto, certamente não atende meu tacanho gosto pessoal.

Voltando aos NFTs, trata-se de objetos que, com a adição de uma assinatura digital, tornam-se únicos e, assim, ganham a atenção de colecionadores interessados que investiriam para ter posse de um. Note-se aqui que esta posse também é apenas virtual, diferentemente das latinhas citadas acima.

Uma obra executada por meios eletrônicos pode ser assinada digitalmente usando-se um processo derivado do “blockchain”, e assim ir a venda ou leilão como “objeto único”, podendo obter lances elevados. No caso do garoto, ele produziu uma coleção chamada de “Weird Whales”, “baleias estranhas”, consistituida por 3350 pequenos desenhos digitais de baleias com acessórios. Conseguiu vender a colação toda em poucos dias. Há técnica precoce, arte e criatividade no trabalho dele, que merece recompensa. O que pode parecer um oxímoro é que, a algo que consegue ser reproduzido indefinidamente e mantendo rigorosa fidelidade à sua essência como é o caso da produções digitais, possa associar-se uma unicidade conceitual, um NFT. A distinção entre objetos e idéias tornou-se cada vez menos clara. Quando Tomas Jefferson afirmou que a transmissão do conhecimento e de idéias era como “acender uma vela na chama de outra”, ou seja quem recebe a luz não a rouba de quem a repassou, certamente não tinha previsto os novos tempos...

O efeito da Internet em reforçar esse comportamento é implacável: há uma compulsão universal, na rede, de seguirem-se tendências, para o bem ou para o mal, sem que se gaste tempo em pensar sobre elas. Nos dizeres do Cambalache, “vivemos misturados num mesmo lodo, todos manuseados”.

Do meu lado reconheço que preciso de um “aggiornamento” nesses temas, mas, afinal, estou velho e de certa maneira satisfeito com minha forma de pensar e ver as coisas. Mas vou aproveitar e procurar boas ofertas de NFTs na Internet, para iniciar minha própria coleção!...


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Dois artigos sobre os NFT citados (Weird Whales):

https://www.loop-news.com/p/a-12-year-old-kid-coded-his-own-nft



https://futurism.com/the-byte/12-year-old-400000-selling-nfts-to-idiots

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Cambalache, cantado por Gardel e por Caetano:
https://www.youtube.com/watch?v=SvMcaSgiMro
https://www.youtube.com/watch?v=K3vuRcmDI8g

e com Raul Seixas, em português:
https://www.youtube.com/watch?v=7roDWoU2L8Y

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A "fonte", de Duchamp:
https://en.wikipedia.org/wiki/Fountain_(Duchamp)

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A "Merde d'Artiste", de Piero Manzoni:
https://en.wikipedia.org/wiki/Artist's_Shit



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