terça-feira, 9 de junho de 2020

Morigeração

No ginásio, meu professor de português apresentou à classe os sonetos do Bocage, enaltecendo a qualidade lírica, mas já advertindo que parte de seus outros escritos, por ser muito satírica e libidinosa, estava vedado aos de nossa idade. Manuel Maria Barbosa du Bocage viveu numa época de grande crise, e chegou a passar algum tempo preso por ter escrito um poema antirreligioso.

Hoje os tempos não são menos complexos. Numa radicalização de posições, passamos a conviver com uma linguagem abusiva, e que não raramente ignora os fatos, na ânsia de criar narrativas pouco verídicas… Há leis bem estabelecidas para punir crimes e abusos mas, por diversos motivos, entre eles o de atender a “clamor popular” difuso, multiplicam-se propostas “inovadoras” que visam a prover alívio aos usuários; medidas que pretendem conter o que pareça ser calunioso, ofensivo, ou apenas desagradável.

Que há tempos abandonamos a cordura parece claro. A virulência das expressões que circulam pelas redes sociais não tem paralelo, e só faz aumentar. Para a rede temos o Marco Civil, que completou mais de seis anos, regula direitos e deveres, e foi globalmente bem recebido.

Mas são cada vez mais frequentes as propostas de se incluírem alterações nele, que poderão esconder muito perigo para a nossa liberdade. O Marco Civil é uma lei construída de forma paradigmática e, caso haja espaço para aperfeiçoamentos, eles deveriam ser precedidos de um debate público tão amplo e extenso qual foi o que houve quando da sua elaboração.

Há pontos técnicos a observar: na internet, só regras globais funcionam bem. A tentativa de criar espaços locais com regras específicas redunda ou numa segmentação da rede global, ou em estímulos de se buscarem formas de contornar essas restrições. A resistência da internet ao controle foi expressa por John Perry Barlow: “a internet interpreta ‘censura’ como um defeito, e busca rotas para contorná-lo”. Se queremos criar uma “internet com regras próprias”, estaremos promovendo sua ruinosa desagregação. Em qualquer legislação vindoura, a infraestrutura da rede terá que ser preservada em sua neutralidade e funcionalidade, sob pena de descartarmos “o bebê junto com a água do banho”.

Quanto aos agentes na rede, todos devem ser responsáveis pelos seus atos, mas sempre por decisão judicial. Criar instâncias intermediárias com poderes censores, pode alimentar monstros e gerar problemas ainda mais complexos. Exigir identificação positiva dos internautas, por exemplo, além de violar a privacidade, sempre onerará os inocentes. Afinal Bocage usava o pseudônimo de Elmano Sadino quando fazia versos bucólicos. Na internet sempre ficam rastros e a guarda dos metadados, prevista no Marco Civil, sempre permitirá chegar ao autor do desmando, desde que assim definido pela Justiça. Repassar a intermediários o papel de definir o que é “verdade” ou “mentira” é uma decisão que geraria abusos de autoridade, e que poderia transformar nossa liberdade de expressão num aleijão.

Voltemos à elegância e à morigeração, mas sem abrir mão da liberdade. Bocage também foi o poeta da liberdade, e a usou em toda sua extensão: 


Ah! Se a vossa liberdade
zelosamente guardais, 
como sois usurpadores
da liberdade dos mais?
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https://poemasdebibe.blogspot.com/2013/08/o-passarinho-preso-bocage.html

http://www.faroldasletras.pt/bocage.html

Liberdade Querida e Suspirada

Liberdade querida e suspirada,
Que o Despotismo acérrimo condena;
Liberdade, a meus olhos mais serena,
Que o sereno clarão da madrugada!

Atende à minha voz, que geme e brada
Por ver-te, por gozar-te a face amena;
Liberdade gentil, desterra a pena
Em que esta alma infeliz jaz sepultada;

Vem, oh deusa imortal, vem, maravilha,
Vem, oh consolação da humanidade,
Cujo semblante mais que os astros brilha;

Vem, solta-me o grilhão da adversidade;
Dos céus descende, pois dos Céus és filha,
Mãe dos prazeres, doce Liberdade!

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Liberdade, onde estás? Quem te demora

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não Caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,morigeracao,70003328707
https://img.estadao.com.br/fotos/crop/640x400/resources/jpg/7/8/1591654232387.jpg




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