Quem não gostaria de sanear a internet, ambiente em que nos movimentamos e vivemos hoje? Remover de lá o que seja maliciosamente enganador, estupidamente virulento ou viciosamente racista e excludente? Todos anseiam por um ar leve e puro. Que apenas informações fundamentadas e edificantes cheguem até nós, e que possamos confiar integralmente no próximo. Essa utopia, entretanto, além de não ter guarida no que conhecemos por “gênero humano”, estará sempre longe, no horizonte, como algo a ser incansavelmente buscado, porém inatingível. O perigo é escolhermos caminhos escorregadios e falhos para avançar mesmo um pouco na direção da ansiada meta. O perigo é a emenda sair pior que o soneto. Oscar Wilde, numa famosa e sábia tirada, nos previniu: “quando os deuses querem punir alguém, eles atendem os seus pedidos”.
Visando a atender a esses desejos há vários projetos em trâmite nas casas legislativas federais, que se propõem como eficiente bálsamo para aliviar a praga das notícias falsas na internet. Afinal quem não aplaudiria um lenitivo para isso? Mas há consequências numa legislação que inclui a necessidade de identificação positiva dos usuários de rede e o rastreamento das mensagens que são repassadas. Além de eventuais dificuldades intransponíveis para sua implantação na rede global, trará grandes riscos à nossa privacidade e ao exercício da liberdade de expressão na Internet. Muitas vezes eivados de imprecisões técnicas graves e que sugerem pouca familiaridade com aspectos técnicos do funcionamento da internet, eles oneram essencialmente os que estão à mão, os inocentes. Projetos feitos sem extenso debate prévio com a comunidade, podem levar a leis que se comportem como teias de aranha: apanham os pequenos insetos, enquanto os maiores as rasgam e escapam. E perde-se o objetivo de se construir um ambiente jurídico coerente e seguro. Hoje, quando celebramos a existência da Lei Geral de Proteção de Dados, é irônico ver outras propostas indo em direção a crescente vigilantismo, com riscos, até, de deformar o Marco Civil da Internet.
O risco dos pedidos apressados lembra “A Mão do Macaco”, um curto e sombrio conto de W.W.Jacobs, escrito em 1902. Resumidamente, um casal idoso e seu filho jovem recebem uma visita de um major, antigo amigo, e na conversa fala-se sobre magia. O major alerta que isso é algo perigoso, que se deve evitar. Mostra uma mão mumificada de macaco, que teria poderes para atender tres desejos, e sugere que ela seja jogada ao fogo, pelos riscos que representa. A família inicialmente ri-se do caso mas, ao final, decide ficar com o tal objeto, ao invés de destruí-lo. Não resistindo à ideia de testar os poderes do amuleto resolvem pedir-lhe que seja saldada a dívida remanescente da compra da casa: 200 libras. No dia seguinte, após o filho seguir ao seu emprego, recebem uma nova visita: é o representante da empresa onde o filho trabalha, trazendo uma notícia funesta: o jovem teria sido atingido pela máquina que operava e falecera. E a empresa, contristada, envia aos pais a quantia de 200 libras como maneira de aliviar a dor… O conto segue - ainda há dois desejos disponíveis - porém já fica claro que podemos nos arrepender amargamente quando formulamos pedidos mal-engendrados. O pedido foi atendido: as 200 libras chegaram, mas perdeu-se um bem muito maior! A pressa na construção de um remédio pode sair mais grave que o mal que se pretendia combater.
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"Um marido ideal" Oscar Wilde:
Sir Robert Chiltern: <...> Eu me lembro de ter lido em algum lugar, em algum livro estranho, que quando os deuses querem nos punir atendem aos nossos pedidos.
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Sobre "A Mão do Macaco" ou "The Monkey's Paw"
https://en.wikipedia.org/wiki/The_Monkey%27s_Paw
https://freebookseditora.weebly.com/uploads/1/1/9/3/119330764/9_-_a_m_o_do_macaco__3__2.pdf
- E os três pedidos formulados foram realmente atendidos? - perguntou a Sra. White.
- Foram - respondeu o major, e o copo chocou-se contra seus fortes dentes.
- E ninguém mais renovou os pedidos? - perguntou a velha senhora.
- A primeira pessoa teve, sim, os seus desejos satisfeitos - respondeu -. Eu não sei quais foram os dois primeiros pedidos. Mas o terceiro desejo foi a morte. Foi dessa maneira que eu obtive a mão do macaco.
Sua entonação era tão solene que o silêncio caiu sobre o grupo.
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3 comentários:
a frase de Oscar Wilde me lembrou de um provérbio do Antigo Egito: "nunca diga que as coisas não poderiam piorar. os deuses podem tomar isso como um desafio."
Grande Demi. Que delicia encontrar isso aqui. Vou ler os antigos posts. Eu não só concordo absolutamente com sua colocação quanto a coloco nos dizeres daqui do "interior": Cuidado com o que você deseja, muitas vezes consegue.
Danton e Spina, Obrigado pelos comentários!
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