Há
um interessante filme greco-turco de 2003 que em português ganhou o
título de "O Tempero da Vida", com bela trilha sonora e
uma delicada análise de relacionamentos e emoções. O simples fato
de ser uma produção greco-turca, conhecendo-se a tensão
geopolítica da região, já mostra o clima humano e de otimismo. A
tradução literal do título grego daria algo como "A Cozinha
Política", mas implicaria num grave erro de interpretação: no
caso, "política" remete à raiz "pólis",
cidade. Parte importante do filme passa-se em Istambul, a antiga
"Constantinópolis", que já foi o umbigo do mundo há mil
anos. Os gregos se referiam a essa cidade simplesmente como "pólis",
dado que ela era A Cidade, sem mais. Assim, o título em grego
refere-se à culinária de Constantinopla. Há também um jogo de
palavras em grego que mantem-se em português: o avô do protagonista
explica ao então menino como se deve temperar a vida, e o faz com
uma analogia à astronomia: afinal gastronomia tem apenas um "g"
a mais... E trata do sal, da pimenta, da canela, das especiarias,
associando seus efeitos aos corpos celestes e recomendando ao netinho
atentar aos resultados que os temperos produzem em nossa vida e em
nossos relacionamentos. Pena que a arte do tempero e virtude da
temperança estejam entrando em desuso.
A
polarização, que vemos crescente, é sinal dos nossos tempos. A
aglutinação em torno de dogmas é rápida e nítida, por ser cada
vez mais fácil arrebanhar partidários para qualquer idéia, mesmo
as muito mal cozidas. Quando especialistas discutem um tema sabem que
há opiniões divergentes e, mesmo quando tudo parece consolidado,
nada impede que daqui a alguns anos a teoria suporte venha a cair.
Afinal, tudo que nos parece "natural" hoje já foi
"estranho" algum dia e poderá vir a ser abandonado num
futuro. Muitas vezes uma idéia abandonada no seu nascedouro, depois
de alguns séculos volta e se impõe. O heliocentrismo, por exemplo,
inicialmente proposto por Aristarco de Samos 200 antes de Cristo, não
conseguiu suplantar o geocentrismo de Aristóteles, mas voltou, mais
de mil e quinhentos anos depois, com Galileu, Copérnico e outros.
Ter arrogância na certeza é algo que a verdadeira ciência
desconhece. Newton, fundamental para a física e para se prever a
ação da gravidade nos corpos, foi humilde ponto de dizer que não
forjaria uma hipótese sobre a natureza daquela força que ele tão
bem equacionou: "hypotheses non fingo". Talvez seja um
sábio conselho a seguir. Há os fatos, há as impressões que temos
de fatos, mas sua explicação não deve ser proposta levianamente,
nem acolhida apenas por representar reforço a posições momentâneas
de interesse. A pressa em mostrar que temos opinião sobre tudo
apenas faz engrossar as fileiras dos que, com algum objetivo,
apresentarão explicações ardilosas para o ocorrido. É a origem
das "teorias da conspiração" que encontram terreno cada
vez mais fértil em nosso ambiente virtual. Usar de qualquer
oportunidade ou fato para garimpar neles algo subjacente que possa
ser usado a favor de uma posição é polarizar o discurso e
abandonar a argumentação racional. Afinal, não é nem necessário,
nem razoável, que todos tenham opinião sobre tudo. Marco Aurélio,
imperador e filósofo estóico, recomendava "sempre temos a
opção de não formar juízo sobre algo, e não sofrer pelo que não
se pode controlar. São coisas que não pedem nosso julgamento.
Deixemo-las em paz".
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O Tempero da Vida, trecho em português sobre temperos e astronomia/gastronomia. Vale a pena!
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de http://www.scielo.br/pdf/ss/v11n4/v11n4a05.pdf trecho da citação de Newton, "hypotheses non fingo":
" Até aqui não fui capaz de descobrir, a partir dos fenômenos, a causa dessas propriedades da gravidade, e sobre isso eu não invento hipóteses [hipotheses non
fingo]. Pois o que quer que não seja deduzido dos fenômenos deve ser chamado
de hipótese; e hipóteses, quer metafísicas, quer físicas, quer sobre qualidades
ocultas, quer mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental.
Nessa filosofia, proposições particulares são inferidas dos fenômenos e, depois,
tornadas gerais por indução. Foi assim que a impenetrabilidade, a mobilidade, a
força impulsiva dos corpos e as leis do movimento e da gravitação foram descobertas. E para nós basta que a gravidade realmente exista, e aja de acordo com as
leis que explicamos, servindo abundantemente para dar conta de todos os movimentos dos corpos celestes e de nosso mar (Principia,
p. 457)"
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Marco Aurélio, Meditações:
Livro VI, 52: 52. "É lícito não formar opinião a este respeito e não sofrer atribulações da alma; as coisas em si mesmas não têm natureza capaz de criar nossos juízos. "
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Cena do filme Politiki Kouzina, traduzido no Brasil como O Tempero da Vida,
em https://link.estadao.com.br/noticias/geral,mais-canela-menos-pimenta,70003184079
Cena do filme Politiki Kouzina, traduzido no Brasil como O Tempero da Vida,
em https://link.estadao.com.br/noticias/geral,mais-canela-menos-pimenta,70003184079
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