terça-feira, 5 de março de 2019

Terça-feira Gorda

Começo me desculpando aos que eventualmente se sintam ofendidos. Esse “gorda” do título não reflete “gordofobia”, nem “gordolatria”, horrendos hibridismos tão em voga hoje. Remonta a “Mardi Gras”, a terça-feira untuosa dos franceses, último dia para se consumir costelinhas, rabadas e torresmos, dado que vem aí a quaresma e o início do jejum. Mas hoje é “terça-feira” gorda de Carnaval, véspera da “quarta-feira de cinzas”, e sinto-me insuficiente para questionar o que nossos antepassados estabeleceram e tem se mostrado sensato.

“Terça-feira” evoca em mim pretéritas épocas da meninice. No meu bairro, terça-feira era o dia da feira livre. Dia em que os feirantes apregoavam as qualidades dos produtos, materializados nas bandejas de tomates, batatas, alfaces, laranjas. “Prove aí, freguesa, a minha laranja-da-baía... Doce como mel. Só compra se gostar! Sem compromisso!”. Época anterior ao depois famoso “pastel de feira”, do qual viraria cliente anos mais tarde. E havia uma forma fácil de saber que estava chegando o “fim da feira”: era o cheiro persistente de peixe se sobrepondo aos demais. O odor da barraca do peixeiro marcava a hora de levantar acampamento.

A lembrança da feira e o seu processo aberto de mercadeio trouxeram-me outra imagem forte: o artigo de Eric Raymond “a Catedral e o Bazar”. Nele, comparava-se duas formas de produção de bens: uma altamente hierárquica – a Catedral – onde poucos definem a arquitetura final e os demais apenas contribuem como mão de obra –, e o Bazar, onde o processo de definição e construção é interativo e continuamente participativo. Todos conhecem esse conceito, e é o que descreve a evolução do sistema operacional Linux e de outros programas abertos e colaborativos. Ousaria dizer que a própria Internet é resultado muito mais de um “bazar” do que de uma “catedral”, se bem que há que se reconhecer influências importantes de ambos os processos. Ainda na mesma linha, estamos hoje a menos de 10 dias da comemoração dos trinta anos da invenção da web por Tim Berners-Lee. A data de 12 de março de 1989 é cravada como a do nascimento da web.

Ela, a web, talvez seja o mais expressivo exemplo do que a “feira livre” nos poderia dar. Na web todos apregoamos o que nos interessa, desde o que tomamos no café da manhã, passando pelas nossas posturas políticas, se gostamos ou não de música clássica, ou de coentro. Pouco importa se isso interessa mais ou menos aos nossos leitores. Mas certamente interessa aos que farejam oportunidades de negócio usando nossos comportamentos e escrutinando as tendências em voga. O bazar e a feira livre estão aí, com seus múltiplos efeitos positivos, facilmente identificáveis e claramente louváveis. Mas (e sempre há o outro lado da moeda), como na feira livre, há as bancas que vendem batatas de qualidade, e há as que buscam ludibriar o cliente. Como nas feiras, nós, os clientes deveríamos aprender a ser hábeis e saber distinguir a “baciada” de boas batatas, daquela de batatas “de segunda”. É isso que se espera de clientes experimentados, e é o único caminho que parece promissor.

É terça-feira gorda de carnaval. Vida longa à Internet, à web e, ao vencedor, as batatas! Evoé! Evoé!


Aniversário da Web:
https://home.cern/news/news/computing/web30-30-year-anniversary-invention-changed-world

While working at CERN, Sir Tim Berners-Lee invented the World Wide Web (Image: CERN)

Nenhum comentário: