quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Logofobia

É novo ano, com batalhas a lutar (e, eventualmente perder, mas sempre galhardamente...). Assim, começo com um texto que pouco (mas algo!) tem a ver com tecnologia, aventurando-me em águas hostis. Na antiguidade, um sapateiro, ao ver um quadro do famoso pintor Apeles, teria comentado que as sandálias não estariam corretamente retratadas. Apeles deu razão ao especialista e retocou as sandálias. Em seguida, entretanto, o sapateiro passou a criticar outros aspectos do quadro, ao que Apeles, incisivamente, retrucou: “sapateiro, não vá além das sandálias”... Estarei indo além delas?

O fato é que palavras novas surgem a cada dia, e isso me traz um certo medo, “logofobia”. Ajoelhado no milho, reconheço que parte da “culpa” deve ser atribuída à tecnologia e à velocidade com que precisamos nos expressar, nem sempre com precisão e elegância.

Já foi aceito e dicionarizado o “deletar” algo; pode ser que, em breve, vejamos “printar” um texto, ou “imputar um dado” também consignado nos léxicos. Adições inúteis, por trazerem zero informação nova e por duplicarem termos já existentes em nossa língua. Essa tendência também se vê em muitas outras áreas: horrorizado ouvi (e li) que neste Natal foram ofertados “gifts”. Ora, pois!

Não se trata de discutir ou atacar os conceitos que se pretende exprimir com os “novos vocábulos” – longe disso – mas preservar um mínimo de fidelidade ao vernáculo, à semântica e ao bom senso...

Vou a alguns casos: O que seria, por exemplo, “gordofobia”, aberração vocabular que circula por aí? Eu, por exemplo, não tenho fobia, medo de gordos, muito menos aversão, são-me simpáticos e nem um pouco assustadores. Tenho medo de beiradas altas, sou acrofóbico, e medo de cobras, tenho ofidiofobia, mas, de gordos, certamente não...

Claro que o sentido que se quer passar não é de medo, mas sim contra a estigmatização, a ojeriza, ou, mesmo, o ódio. Nesse caso, o radical envolvido seria outro: miso. Os misantropos odeiam serem humanos, os misóginos detestam mulheres. Se é para manter o “fobo”, que se junte outra raiz grega: que tal lipofobia? Ou, com “miso”, lipomisia? Os latinos apostrofariam os que ainda nos preocupamos com isso: oleum perdisti!

Igualmente disforme é “heliporto”. “Porto” sabe-se o que é mas... o que seria “heli”? Um pedaço de “hélice”? Voa-se só com um pedaço da hélice? 

Aproveito para pontuar que essas invencionices não são “jabuticabas” nacionais. Os norte-americanos também são férteis em criar barbarismos (por emulação, nós os copiamos).Veja-se “workaholic”, que significaria a fixação em trabalho. A justaposição traz “work” com... o final de “alcoholic”. Mas nesse “holic” sobra um pedaço de “alcohol”. Se “ic” final, sozinho, dá a noção de “fixação” “alcoholic”, do jeito que ficou, “workaholic” dá a ideia de fixação em trabalho e... em álcool. Trata-se de alguém que trabalha bêbado?

“Hackathon” e outras novidades surgem terminadas em “athon”? Parece que a intenção era dar ideia de uma maratona de “hackers”. Mas “maratona” é o nome de uma planície (e da erva doce), não decomponível em mar + atona. Ou seja, essa desinência “athon”, sozinha, não traz sentido. E, se fossemos aportuguesar, seria “racatona” para suprir o “h” aspirado inicial. Mas aceito a justa crítica: “ne sutor ultra crepidam!”. Bom ano!




Caco Galhardo, https://cacogalhardo.wordpress.com


https://myowncommonplacebook.wordpress.com/2013/07/26/nao-suba-o-sapateiro-acima-da-chinela/




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