domingo, 30 de outubro de 2016

O alarido das coisas

São tempos barulhentos. Desde os decibéis que afetam nossos ouvidos no dia a dia ao berreiro virtual nas redes sociais. Fazer ouvir a própria voz e, se possível, conseguir que a retransmitam pela rede, numa avalancha de menções e comentários, nunca foi tão fácil, nem tão fútil, nem tão perigoso.

Mas como nada está tão ruim que não possa piorar, um novo problema surge.

É a balbúrdia virtual que fazem “exércitos” recém-constituídos, recrutados por terem “voz” e porque são manipuláveis para atender aos objetivos do seu mentor.  Criam-se agrupamentos de servos virtuais e esses “soldados” são as coisas, hoje ligadas à rede. A um sinal de seu feitor, começarem a “falar” ininterruptamente, incomodando serviços na internet.

São os chamados “bots”, abreviatura de “robots”. A palavra robô, “robot”, em inglês, vem de “rabota”, que nas línguas eslavas significa trabalho. Robôs são trabalhadores artificiais, submissos aos que os criaram ou que os controlam. Os robôs podem ser dotados de inteligência, logicamente também artificial e esses rebanhos são as “botnets”. Exércitos virtuais, que causam danos muito reais.

As coisas ligadas recebem comandos remotamente e fazem parte da chusma que habita as nuvens da internet… A ideia original é que atendessem apenas a comandos de seu dono, que as comprou e as têm, mas sempre há os que podem tentar passar-se por ele e, se conseguirem, como os ratos do flautista de Hamelin, os “bots” seguirão subservientemente os novos patrões.

Esses arregimentadores de combatentes, esses “gatos” das coisas, buscam criar esquadras poderosas, que servirão aos próprios interesses, ou que poderão ser “emprestadas” ou “alugadas” a quem se interesse (e pague...) por seus serviços. Com grande poder disponível e sincronizado, uma enorme cacofonia, uma enchente de dados inúteis pode erguer-se na rede fazendo submergir os diálogos, as interações, a música real, enquanto o dilúvio persistir. Na última sexta, 21, importantes serviços e sítios da internet ficaram inacessíveis por estarem assoberbados atendendo a barulhenta intervenção simultânea de 100 mil fofoqueiros.

O objetivo era mostrar força para derrubar serviços e foi composto de prosaicas filmadoras, daquelas que vemos em elevadores e lojas, com a inscrição “sorria você está sendo filmado”. Certamente quem instalou câmeras para segurança não as imagina como armas de ataque.

O que nós, meros usuários, podemos fazer nesse cenário assustador para evitar sermos inocentes úteis?

Jon Postel cunhou o célebre lema: para nossa convivência na internet, devemos “ser liberais no que aceitamos dos outros, e conservadores no que impingimos a eles”. Na rede a cooperação e o bom senso são vitais.

Ao adicionar novos “habitantes” a ela, devemos zelar pela qualidade e segurança. Usar senhas (fortes!), manter os dispositivos com o software atualizado ou, até, trocar de fornecedor ou mudar de ideia.

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https://www.estadao.com.br/brasil/demi-getschko/o-alarido-das-coisas/

domingo, 16 de outubro de 2016

Bárbaros às Portas!

Quando Aníbal, o cartaginês, cruzou a Europa desde a península ibérica até Roma, o grito de horror que se ouvia na cidade era “Hannibal ante portas!”. Roma resistiu a Aníbal, mas caiu 600 anos depois, quando o bárbaro Odoacro depôs o último imperador romano do Ocidente em 476, e cravou o fim da Idade Antiga. Mais de um milênio após sua fundação, Roma caia, mas nem todo o Império Romano. A leste, Constantinopla, a nova Roma, capital do império do Oriente, aguentaria outros mil anos e apenas em 1453 cederia aos turcos. O que teria permitido ao Império Bizantino essa grande sobrevida em relação à parte ocidental? Talvez o trunfo fosse sua blindagem, uma “barreira de entrada”. Era um triângulo encravado numa península, com dois lados banhados pelo mar, onde jazia pesada corrente de ferro, e uma extensa muralha cercando a cidade toda. Roma, construída sobre sete colinas, era mais difícil de proteger.


A “barreira de entrada”, fosse militar, com muros, ameias, fortificações, ou econômica, com o controle das riquezas, dos meios de produção, maquinário, investimentos, ou mesmo legal e cultural, com leis, alvarás, costumes e ritos, era uma garantia de estabilidade. Afinal os impérios sempre cuidam de se defender, inibindo a formação de competidores que os ameacem.

Hoje, com a Internet, esse cenário muda drasticamente. Não apenas a dinâmica gera prazos muitíssimo menores, como “barreiras de entrada” tem sido reduzidas a pó. Os ataques acontecem em ondas, em setores que se sentiam estabelecidos e seguros em conforto. Comércio, informação, interação, criação de público cativo e de comunidades, foram as primeiras manifestações. Mas não para aí: temos os aplicativos, o Uber, o Blockchain, e muitos mais pela frente.

Haveria como prever fenômenos como Uber e outros na Internet? Ninguém tem bola de cristal, mas talvez valha a pena tentar alguma abordagem, mesmo incompleta e falha. A Internet, em certa medida, assemelha-se a uma “onda bárbara” que ameaça as fortificações que temos. “Barreira de entrada” antigas, em muitos casos desaparecem. Ninguém precisa mais de grandes investimentos ou complexas equipes de apoio para ganhar notoriedade e riqueza. Para facilitar as coisas, do lado do consumidor também houve uma grande baixa de expectativas: a seleção por qualidade e custo simplificou-se – hoje, na Internet, há de tudo para todos, e com qualquer padrão de qualidade (ou de falta dela).

Uma forma de tentarmos prever os próximos passos da rede é descobrir fraquezas, “jardins murados” que atrairão ataques. Blindagens baseadas apenas em leis, licenças e burocracia são fáceis de derrubar no mundo novo. Se, para alguém ser taxista, o busílis era, além habilitação explícita, ter a posse de um alvará, eis aí um espaço promissor! A Internet, como um organismo oportunista, identificará no “sistema imune” do mundo tradicional, pontos fracos que sejam atacáveis e rendosos. Pode ser fácil controlar a matéria dentro de fronteiras nacionais, mas a Internet atua no “éter”, de forma transnacional, e contornará esse obstáculo. “Não há matéria na Internet”, já havia postulado John Parry Barlow há 20 anos. As velhas portas balançam!
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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,barbaros-as-portas,10000082453
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https://media1.lajumate.ro/media/i/new_details/0/127/12738950_hannibal-ante-portas-slavomir-nastasijevic_1.jpg



domingo, 2 de outubro de 2016

Snapchat e o Bolero de Ravel

Num quadrinho sobre “etiqueta à mesa”, alguém pergunta se o lugar certo do celular é à esquerda, com o garfo, à direita com a faca, ou acima, com os talheres de sobremesa. Deveria ser uma piada… Não tenho certeza se ainda é. Como se diz, o celular e a rede aproximaram os distantes e afastaram os próximos. Duas pessoas digitando sua conversa pelo celular, a metros de distância, não mais espanta.

Essa abundância de comunicação, por vezes superficial, instantânea, onde todos falam e ouvem o que querem e o que não querem, sem tempo de reflexão, é uma característica ambivalente. A possibilidade de ampla comunicação é uma das grandes conquistas positivas da Internet. Por outro lado, há a pletora de fotografias, de vídeos que todos tiram e todos mandam o tempo todo. É um momento passageiro de deslumbramento, ou algo definitivo? Quem viver, verá.

A transformação no comportamento é especialmente notável entre os mais jovens. Mário Quintana capta magnificamente essa mudança: “Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem.” Mas é prematuro tentar dar valor positivo ou negativo a isso. Há de se aguardar uma estabilização. Um exemplo vivo dos novos tempos são os aplicativos preferidos dos jovens, dentre eles o Snapchat. Só o conheço tangencialmente, mas sei que a agilidade, a possibilidade de permitir alterações bem humoradas em fotos e a pouca duração dos dados que por ele transitam o fizeram cair no gosto deles.

A exibição pessoal sem limites é característica da época, de narcisismo e de hedonismo. Mostramo-nos a todos, de todas as formas, e ainda por cima nos ofende Snapchat e o Bolero de Ravelmos se alguém critica o que postamos. A falta de critérios sobre o que comunicar faz com que a privacidade, já tão ameaçada pela Internet, fique ainda mais vulnerável. Mesmo a promessa de volatilidade dos dados do Snapchat deve ser vista com suspeição: é sempre bom relembrar que a Internet não esquece e, pior, insiste em manter aquilo que mais gostaríamos de esquecer. Um deslize, uma foto comprometedora, uma frase inadequada, nos assombrarão no futuro. Hoje, à revelia do candidato, um currículo é enriquecido pelo que ele tem feito, ou pior, pelo que dizem dele na rede, seja verdadeiro ou falso. É inegável e espantoso o potencial da informação.

Enquanto pensava no assunto, eu assistia ao Bolero de Ravel pela Sinfônica de Londres, regida por Valery Gergiev, e tive uma “revelação”: há várias leituras do Bolero e uma interessante seria compará-lo à evolução do bicho-homem em direção à racionalidade e à tecnologia.

O Bolero começa com um sutil rufar de tarol (a aurora do pensamento?), depois madeiras, cordas em pizzicato. O tema obsessivo segue com toda a orquestra assumindo-o, numa tensão crescente (idade clássica?). As cordas entram uníssonas, metais, tímpanos (revolução francesa?). Mais percussão, gongos, bumbo (grandes guerras?). E, quando afinal o progresso e a tecnologia estão no clímax, há uma rápida mudança de tonalidade, um acorde fortíssimo e o aterrador e dissonante final. Terminaremos assim?
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https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,snapchat-e-o-bolero-de-ravel,10000079487
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https://www.youtube.com/watch?v=ODeNHRtVNO4
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https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQHQYhp7nirbmW-2Gm38_QhEd0Luxrl5Yg9xg&usqp=CAU