Pego carona em “atenção, a barbárie vem aí, disfarçada de conquista científica”, do texto do Luis Fernando Veríssimo (“Epa”, publicado no Estado no dia 16 de julho). Em mais de 35 anos de existência, a Internet “sobreviveu” a ondas de novos entrantes, indivíduos, instituições, mercados e fez com que estes se adaptassem às regras de convívio e à valorização dos conceitos de rede aberta e livre.
Lembro de discussões via correio eletrônico, e dos repetidos apelos ao uso da “netiquette” (a “etiqueta” da Internet) pelos bem-intencionados. A difícil identificação de emoções/ironias no texto curto do e-mail gerava inúmeros mal-entendidos, depois amenizados com a inclusão dos emoticons.Hoje temos uma ferramenta que permite a liberdade de expressão mas, ao mesmo tempo, pode ser usada para açular “pulsões primitivas”, como vemos em linchamentos virtuais… e reais. É o risco que o Veríssimo aponta.
Há outros riscos tecnológicos, talvez menos óbvios. A tentação do conforto e da sensação de poder que “a tecnologia a nosso serviço” desperta pode fazer-nos relevar o preço que cobra. Mesmo sem Internet, parece muito confortável passar por um pedágio e pagar automaticamente com um chip RFID instalado no carro.
Porém, esse dispositivo responderá também, e à nossa revelia, sempre que provocado externamente por outros leitores que não os dos pedágios. De qualquer forma, com o uso do celular já estamos informando nossa localização o tempo todo, ao menos para o operador e, provavelmente, para outros interessados.
Queremos decidir sobre o que mostrar. A conexão, porém, funciona nos dois sentidos e, mesmo que não seja nossa intenção alimentar o mundo com dados pessoais, eles são alvo de cobiça. Privacidade é matéria frágil.
Dispositivos RFID subcutâneos facilitam a identificação segura e podem carregar outros dados. Num acidente, a consulta ao RFID pode mostrar tipo sanguíneo da vítima, se é doadora, onde achar sua ficha médica. Parece positivo. O RFID responderá a quem pedir seu conteúdo, sem que sejamos informados disso. Um risco que pode ser desproporcional à vantagem.
Em um artigo de 2007, o Pew Research tratou do “homo connectus”, o “ser humano conectado”, candidato a suceder outros, como o “sapiens”, o “faber”, e o “ludens”. O homem conectado participa da grande rede, mas se não tem controle de suas conexões é apenas um elo inconsciente dela.
Lembra-me os experimentos em que eletrodos ajudam a mapear a atividade cerebral de cobaias. Estaremos conectados à rede, sem dúvida, mas preservemos nosso discernimento e controle sobre o que colocar à disposição dos outros. Uma ferramenta de liberdade como a rede não pode servir para transformar elos em grilhões.
Ulisses, em sua jornada de volta ao lar, passou ao largo da ilha das sereias cujo canto era tentação irresistível. Por isso colocou cera nos ouvidos de toda a tripulação e, não querendo privar-se de ouvir, fez-se amarrar ao mastro para não perder-se. É belíssimo o canto da tecnologia e, claro, não queremos nem que nos coloquem cera nos ouvidos, nem que nos amarrem a um poste. Conseguiremos ouvi-lo sem rendermo-nos a ele?
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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,homo-connectus,10000051553