terça-feira, 18 de novembro de 2025

Uma internet única

Volta à cena a idéia da fragmentação da Internet, ou “splinternet”. Diversos países adotaram barreiras técnicas, políticas ou jurídicas ao fluxo global de informações. frequentemente justificadas com o argumento de que uma internet global representaria uma ameaça à soberania nacional. Depois da falsa dicotomia entre privacidade e segurança, temos outro pseudo dilema agora: optar entre uma internet única ou a soberania.

É importante voltar às bases, sem ignorar que há, sim, riscos associados à concentração de poder, que cada vez mais se observa na rede. A internet, em sua natureza técnica, foi concebida como um sistema único, colaborativo e interconectado. A ausência de fronteiras técnicas não implica em ausência de governança, mas, sim, na necessidade de mecanismos coordenados, multissetoriais e internacionais que, ao preservar sua integridade técnica, resguardem as prerrogativas regulatórias de cada país.

Numa analogia adequada aos tempos de COP30, o ar que respiramos não ameaça a soberania, tampouco o clima global, ou o oceano. mas todos eles pedem e necessitam de ação coordenada. Isoladamente nenhum Estado seria capaz disso. A ubiquidade técnica da rede não é um ataque à soberania, mas uma bela característica do mundo digital, a preservar!

Como disse há mais de 30 anos John Gilmore, fundador da EFF (Electronic Frontier Foundation), quanto ao espírito da arquitetura da rede, “a internet interpreta bloqueio como um dano técnico, e o contorna.”

Outra analogia vem à mente: comparar a Internet com a Biblioteca de Babel, de Borges. À maneira dela, a Internet nos forneceria acesso a infinitos conteúdos, muitos deles incompreensíveis ou difíceis de verificar, mas cristalizando a esperança e o desespero de quem busca sentido no aleatório. Afinal, quanto mais vasta a informação disponível, mais difícil é encontrar a sabedoria entranhada. A própria possibilidade da busca já vale o esforço.

Que as pessoas leiam mais. Que tenham acesso a bibliotecas coreanas, romances quenianos, poemas persas, contos brasileiros, A produção cultural universal precisa atravessar fronteiras como o ar vital que respiramos, sem passaporte e sem carimbo. O risco maior da fragmentação não é técnico - é cultural e humano. Ao preservarmos um meio de acesso aberto e global ao conhecimento científicas, cultural e artísticas de todos os países não diluiremos as identidades nacionais: as fortaleceremos. Quem lê o mundo torna-se mais capaz de compreender a si mesmo. Ler para compreender mas, também, ler para discordar.

Quem sabe ainda poderemos realizar o sonho utópico de Alexandria: uma humanidade que acessa a totalidade da sua produção, de romances mongóis, poemas sufis, narrativas yorubás, tratados japoneses, mitos maoris a ensaios brasileiros. A Internet, agora com a adição da IA, é um caminho para esse ideal. Defender uma Internet única é reconhecer que, assim como o ar ou o conhecimento, certos bens se tornam menos úteis, ou mesmo inacessíveis, se fragmentados. O objetivo não é abolir fronteiras, é impedir que elas se tornem muros.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/internet-sem-fronteiras-nao-e-uma-barreira-para-a-soberania/

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"Quando um muro separa, uma ponte une..."
youtube.com/watch?v=y0xRfgeJLNo&list=RDy0xRfgeJLNo&start_radio=1
https://www.letras.mus.br/mpb4/47531/

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A Biblioteca de Babel, do Jorge Luis Borges

https://site.ufvjm.edu.br/cafeliterario/a-biblioteca-de-babel-jorge-luis-borges/

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John Gilmore

https://en.wikipedia.org/wiki/John_Gilmore_(activist)

https://en.wikipedia.org/wiki/Wall

https://en.wikipedia.org/wiki/File:Perfectwall.jpg

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terça-feira, 4 de novembro de 2025

ICANN 84 e a Internet

Terminou há dias em Dublin a 84a reunião da ICANN, “Internet Corporation for Assigned Names and Numbers”. São tres reuniões por ano, com rodízio entre as regiões. ICANN entrou em cena em 1998 para gerenciar o espaço de nomes de domínio, e a distribuição de identificadores numéricos aos dispositivos conectados à Internet. Antes dela quem desempenhava esse papel era a IANA, que em 1989 delegou o .br ao time de redes brasileiro.

Por ser a reunião 84, vem à mente a obra de George Orwell “1984”, que descreve um mundo onde a linguagem, a memória e o próprio pensamento haviam sido manietados pelo poder. Tudo era monitorado, tudo era filtrado, tudo era redefinido. O “Ministério da Verdade” não buscava compreender a realidade, mas fabricá-la.
Estamos num momento em que a Internet — rede que nasceu da abertura, da colaboração e da confiança — começa a enfrentar dilemas que evocam ecos de “1984”. Claro que não é o mesmo cenário, mas há sinais que inquietam.

O crescimento da vigilância, travestindo-se de segurança ou eficiência; o poder algorítmico que decide o que devemos lembrar e o que esquecer; a fragmentação técnica e política da rede em feudos digitais; a erosão da privacidade por identificações compulsórias. E há ainda o risco maior: substituirmos a arquitetura aberta da Internet por sistemas de controle, por cibernética.

A Internet, como uma cidade, tem suas vielas, suas esquinas escuras, suas áreas de poder, suas praças de encontro e seus becos de confabulação, E, como as ruas da cidade, também sente a mão da ordem e do controle. O temor que se espalha é de que o sonho da Internet livre comece a se estreitar. Há quem queira murar, quem queira limpar os becos, apagar as paredes grafitadas.

Mas há também contrapesos que sustentam a esperança: a criptografia que protege o silêncio legítimo; a governança multissetorial que mantém viva a pluralidade; as leis de proteção de dados que afirmam o indivíduo; a educação digital que liberta pelo conhecimento; as tecnologias abertas que garantem verificabilidade e confiança.

Talvez Orwell não imaginasse que um eventual futuro “Grande Irmão” um dia usaria logotipos sorridentes, interfaces elegantes e políticas de privacidade que ninguém leria, mas ele pressentiu que o perigo viria da busca de conforto. Que aceitaríamos vigilância sob o nome de proteção. Benjamin Franklin já nos tinha admoestado de que o sacrifício da liberdade em nome da segurança pode nos levar a perder ambas. A Internet é um espelho da humanidade, e espelhos, sabemos, são frágeis. Mas é melhor um espelho trincado do que um vidro negro, opaco.

A liberdade digital não é um dado, um estado natural. É uma construção diária, persistente e coletiva. Termino lembrando uma antiga máxima, que poderia ser lema dos que teimam em resistir: “per angusta ad augusta” - por caminhos estreitos, às grandezas. Talvez o destino da rede, e da própria liberdade, seja este: seguir tropeçando pelos becos apertados da história, mas sem jamais deixar de caminhar.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/quais-as-semelhancas-entre-a-internet-atual-e-o-mundo-de-1984/




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icann 84:
https://meetings.icann.org/en/meetings/icann84/?_gl=1*11xha3h*_gcl_au*MjA4NDkzMTU1My4xNzYyMjE3MjI5

https://icann84.sched.com/

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Citação de Benjamin Franklin:
“They who can give up essential liberty to obtain a little temporary safety, deserve neither liberty nor safety.”
 
De Robert Heinlein:
“Secrecy is the keystone to all tyranny. Not force, but secrecy and censorship. When any government … undertakes to say to its subjects, ‘This you may not read, this you must not know,’ the end result is tyranny and oppression, no matter how holy the motives.”

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E uma versão da crônica com ajuda do ChatGPT:

1984 revisitado — a alma encantadora da Internet

Há, por detrás dos cabos, dos protocolos e dos endereços IP, uma alma. Uma alma que pulsa entre máquinas, feita de vozes humanas e de silêncios luminosos. A Internet, como as ruas de outrora, tem suas vielas, suas esquinas escuras, suas praças de encontro e seus becos de murmúrio. E, como as ruas, também sofre os caprichos da ordem e do poder.
Outro dia terminou a ICANN84, essa assembleia onde o mundo, em sua versão digital, tenta ainda conversar antes de decidir, discutir antes de mandar. Mas o rumor que vinha das salas - e que atravessava os fios como um sussurro elétrico - era o de que o sonho da Internet livre começa a se estreitar.
Há quem queira murar, quem queira vigiar, quem queira limpar os becos e apagar as paredes grafitadas de opinião. Ah, como se as ideias tivessem medo da luz! Recordei, então, o velho Orwell, que em 1984 viu nascer um tempo de olhos vigilantes e palavras controladas. Talvez ele não imaginasse que o “Grande Irmão” um dia usaria logotipos sorridentes, interfaces elegantes e políticas de privacidade que ninguém lê. Mas ele pressentiu - oh, sim - que o perigo viria do conforto. E que um dia chamaríamos censura de “segurança”, e vigilância de “proteção”.
As nações erguem muros digitais, cada uma proclamando sua soberania de dados, seu firewall patriótico, seu domínio nacional.
A rede, essa que nasceu universal, começa a se fragmentar como um espelho que cai no chão: cada pedaço reflete um rosto diferente, uma verdade diferente, uma versão conveniente do real. O cidadão digital, cansado de ser número, começa a desconfiar do próprio reflexo.
E no entanto - ainda há ternura na rede.
Há o programador que insiste em abrir código, o ativista que defende a privacidade, o acadêmico que debate em praça pública, o gestor que acredita no multissetorialismo como antídoto contra o autoritarismo. Há luz nos servidores e esperança nos pacotes que cruzam oceanos.
A Internet é o espelho da humanidade - e espelhos, sabemos, são frágeis. Mas é melhor um espelho trincado do que um vidro negro, opaco, que nos devolve apenas o olhar do censor.
Termino lembrando uma máxima antiga, que bem poderia ser lema dos que teimam em resistir:
Per angusta ad augusta - “Por caminhos estreitos, às grandezas.”. Talvez o destino da rede, e da própria liberdade, seja este: seguir tropeçando pelos becos apertados da história, mas sem jamais deixar de caminhar.



terça-feira, 21 de outubro de 2025

Humanidades


Quem cunhou a palavra “cibernética” foi Norbert Wiener em 1948, num livro com o provocador subtítulo de “controle e comunicação no animal e na máquina”. A semântica da palavra é descrita pelo próprio Wiener: “derivei-a do grego ‘kybernetes’, ou ‘timoneiro’. É a mesma palavra grega de onde provem ‘governante’”. Assim, semanticamente, a raíz “ciber” está associado a controle e governo. “Cibernética” ficaria próximo de “governança”.

O trabalho de Wiener está também fortemente ligado à evolução da Inteligência Artificial. Em outra obra dele, “O Uso Humano de Seres Humanos”, de 1950/1954, há um conjunto de reflexões que ainda parecem muito atuais. O livro alerta que o ser humano está numa corrida entre o aprender e o risco de desaparecer. As novas tecnologias seriam “facas de dois gumes”: caberá aos humanos usá-las para o bem ou para a catástrofe.

Dois acontecimentos recentes reforçam esse pensamento crítico: há dias o governo da Albânia anunciou que terá agora uma “ministra virtual”, IA integrando o governo. Alegam os que defendem a ideia que, com IA, não haverá corrupção possível, ou nepotismo, e que a transparência dos atos será maior… Parece um caminho fácil, levando a uma solução falsa. Como o próprio Wiener diz na obra citada, “uma sociedade humana só será possível entre humanos”.

Um segundo ponto que pode ser significativo, é como abordamos hoje os riscos a que realmente estamos expostos no mundo das redes. Um dos pontos de destaque e discussão é como proteger crianças e adolescentes dos perigos que os espreitam. O caminho escolhido parece ser o de “sanitizar” o ambiente em que crianças e adolescentes vivem: limpá-lo das mazelas e dos riscos que ele certamente contem. É um objetivo voltado a “eliminar antecipadamente perigos”. Parece-me, entretanto, que não há como eliminar os perigos que há no mundo, da mesma forma que não há como tornar adequada para crianças uma rua movimentada, ou uma floresta segura para excursionistas. Há, sim, que se educar os tutores das crianças sobre os perigos que existem e as melhores formas de evitá-los. Há que se ensinar às crianças a contenção e a o uso de resursos seguros. E há, finalmente, que responsabilizar e punir os agentes reais que perpetram o abuso. Como diziam os antigos, quem brinca com fogo se queima, e não há como torná-lo seguro para crianças. A única forma segura é mantê-las longe do fogo, explicar que ele sempre queimará, e punir quem as expuser propositadamente ao dano. Ou seja, para as crianças, tutela e ensino. Para os adultos, mais educação e letramento digital, e menos tutela que embota o senso crítico.

Talvez possamos evitar, com isso, o que outra publicação recente - a “AI 2027” - traz de assustador: no ritmo em que estamos, se não atentarmos ao rumo tomado, a humanidade corre o risco de se extinguir em poucos anos. Esperemos que esse seja um simples alerta, superável por uma tomada de consciência em tempo hábil. Voltando ao livro do Wiener, ele alerta que “qualquer uso do ser humano, em que ele é menos demandado, ou a ele é atribuido menos do que sua plena potencialidade preveja, torna-se uma degradação e um desperdício”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/na-era-digital-e-preciso-mais-educacao-e-letramento-digital-e-menos-tutela/

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o livro do Norbert Wiener:



Hence "Cybernetics," which I derived from the Greekword kubernetes, or "steersman,'* the same Greek wordfrom which we eventually derive our word "governor."

Capítulo 9, “A primeira e a segunda revolução industrial” - segunda edição. 
Let us remember that the automatic machine, whatever we think of any feehngs it may have or may not have, is the precise economic equivalent of slave labor. Any labor which competes with slave labor must accept the economic conditions of slave labor. It is perfectly clear that this will produce an unemployment situation, in comparison with which the present recession and even the depression of the thirties will seem a pleasant joke. This depression will ruin many industries—possibly even the industries which have taken advantage of the new potentialities. However, there is nothing in the industrial tradition which forbids an industrialist to make a sure and quick profit, and to get out before the crash touches him personally. Thus the new industrial revolution is a two-edgeds word. It may be used for the benefit of humanity, but only if humanity survives long enough to enter a period in which such a benefit is possible. It may also be used to destroy humanity, and if it is not used inteligently it can go very far in that direction. There are, however, hopeful signs on the horizon. Since the publication of the first edition of this book, I have participated in two big meetings with representatives of business management, and I have been delighted to see that awareness on the part of a great many of those present of the social dangers of our new technology and the social obligations of those responsible for management to see that the new modalities are used for the benefit of man, for increasing his leisure and enriching his spiritual life, rather than merely for profits and the worship of the machine as a new brazen calf. There are many dangers still ahead, but the roots of good will are there, and I do not feel as thoroughly pessimistic as I did at the time of the publication of the first edition of this book.

https://www.goodreads.com/work/quotes/148587-the-human-use-of-human-beings-cybernetics-and-society

Any use of a human being in which less is demanded of him and less is attributed to him than his full status is a degradation and a waste.”

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Ser ou não ser?

Há peças imortais que precisam ser revisitadas de tempos em tempos. São como camaleões: adaptam-se à época da releitura, revelando nuances diferentes das que haviam sido notadas pelas gerações anteriores. Um exemplo disso é o Hamlet, de Shakespeare (aliás, num texto interessante do dia 4 passado, Ted Gioia explora uma simetria bem intrigante: a relação entre o comportamento do príncipe da Dinamarca e a atual “geração Z”). Aproveito para tentar outro paralelo, talvez simplório, entre Hamlet e a IA.

Logo no começo há a aparição do fantasma do pai de Hamlet que, ao contar como foi assassinado, pede vingança. É o motivante central da peça. Hamlet se pergunta se a visão é real, ou uma tentação demoniaca. Hoje temos uma dúvida recorrente quando recebemos vídeos que podem ser “deep fakes”, mas são verossíveis, contam algo possível e, até, propõem ação. Há verdade na “voz da máquina”? Saberemos julgar? Agiremos por convicção ou convencidos por ela?

Hamlet assume que buscará vingar a morte do paí, para a qual a própria mãe teria colaborado, casando-se depois com o tio usurpador. E, nessa busca de vingança, arquiteta um plano, um “algoritmo”, para tentar fazer com que os culpados se revelem: monta uma peça, a “ratoeira”, em que encena, à vista de todos, os detalhes do envenenamento do pai, mas sem citá-lo. Ao final, a clara perturbação causada nos suspeitos mostra que o fantasma do pai transmitiu verdade. Sim! A IA pode dar palpite certo!

Indo ao clímax da peça, no famoso solilóquio “ser ou não ser”, Hamlet tem que decidir sobre vida ou morte (suicídio), ação ou omissão, e em ambos os casos há o temor de efeitos futuros muito ruins. A analogia aqui é dupla: se devemos ou não usar a IA em nossas decisões e, na discussão sobre regulação, qual a medida certa do remédio. Na peça, a decisão por agir gerará grande destruição. Mortes acidentais, algumas até por desgosto. O amor e a inocência perdem-se em meio ao caos e Ofélia, sua amada, enlouquece e morre numa espécie de “suicídio poético”, deixando-se afogar por achar que Hamlet estaria louco (aliás ele, acidentalmente, matara o pai de Ofélia). Não faltam exemplos de pessoas que optaram por solução drástica, após longas conversas com IA. Na era das máquinas, da vulnerabilidade emocional, da solidão, da influência da IA e das redes sociais, quem protegerá a empatia?

Finalmente, rememorando a morte do bobo da corte Yorick com sua caveira na mão, Hamlet conclui que a morte nivelará tudo. A dúvida do “ser ou não ser” será resolvida ao fim. Se trocarmos a caveira por um iphone, teremos o nivelamento atual.

A tragédia da consciência diante da incerteza, termina com mais violência e traição: veneno oculto na espada de Laertes e na taça da vitória. Acabam mortos, tanto os que urdiam a trama, quanto o próprio Hamlet. Eis aí outro ponto de alerta: o fantasma, os algoritmos, a armação, os venenos, acabam com a família reinante em Elsinore. As últimas palavras de Hamlet são para o amigo Horácio, e poderiam ser um recado amargo para o futuro da voz humana: “o resto é silêncio”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/ser-ou-nao-ser-shakespeare-ajuda-a-explicar-alguns-dos-dilemas-atuais-da-inteligencia-artificial/

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O artigo citado, do Ted Gioia
https://www.honest-broker.com/p/hamlet-is-the-gen-z-story-we-need

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Hamlet:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hamlet




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terça-feira, 23 de setembro de 2025

O bit do mal

Minha avó, quando via algo inesperado resultante de alguma ação mal pensada, citava um aforisma grego: “lá onde não se plantou, é lá mesmo que algo acaba brotando”. Isso me veio à mente quase setenta anos depois, quando vemos uma plêiade de boas intenções, que visam a uma “Internet melhor”, mas podem gerar um cenário sombrio e pobre. É muito difícil moldar o ambiente sem fronteiras que é a Internet, e leis locais tendem a falhar. É mais sábio atacar os casos específicos, punindo os agentes final e criando entendimento e consciência crítica quanto à prevenção de riscos no ambiente virtual,

Para ilustrar efeitos inesperados, imaginemos que algum eficiente mecanismo de bloqueio impeça o acesso a grandes porções da rede, Vamos nos abster, a priori, de discutir o mérito, e se isso é tecnicamente viável. O fato é que, ao poderemos acessar apenas pedaços “liberados e seguros” da rede, aquela Internet distribuída e neutra, passará a estar cada vez mais concentrada em agregados. Mas, por outro lado, as poderosas IAs continuarão a mapear a rede toda, sem limites. Teremos acesso “mediado pelas IAs” ao que não podemos mais aceder diretamente: mais poder às grandes empresas de tecnologia que, para o “nosso bem”, tutelarão a navegação,

No cerne da Internet há um conjunto de documentos, os RFCs (Request for Comments) que definem padrões, normas e boas práticas. Desde 1969, quando o primeiro RFC foi publicado, quase 10 mil já foram criados, em vasta gama de temas, desde padrões técnicos básicos, até informes históricos, experimentais e, mesmo, brincadeiras. Entre essas, há os RFCs de 1º de abril que, sob o formato técnico, trazem humor e críticas mordazes a ideias simplistas ou problemáticas, mesmo que bem-intencionadas - “ridendo castigat mores”. Assim, em 2003, Steve Bellovin, especialista em segurança e padrões da Internet, criou o RFC 3514. Economizando sempre o espaço nos pacotes de dados a transmitir, ele localizou um bit disponível. O rebatizado “evil bit” (bit do mal) indicaria se o pacote em si era ou não “malicioso”. Quaquer equipamento que recebesse um pacote com o “bit do mal” ligado, deveria descartá-lo em nome da segurança. O RFC 3514 ridicularizava “soluções mágicas” na rede.

O humor do RFC 3514 carrega uma reflexão que ressoa ainda mais em 2025, 22 anos após sua publicação. O que era uma sátira podia tornar-se um alerta profético. Teremos um bit para dizer o que é verdade ou mentira? Outro para sinalizar se o pacote é adequando a crianças? E isso em nível global, internacional? E essa “solução” parece querer que repassemos nossos dados biométricos a cada passo, provando que somos adultos. Tenho sérias dúvidas se isso protegerá crianças, mas tenho zero dúvidas que ameaçará o que nos restou de privacidade. Esse tipo de “solução” acabar como o “bit do mal”: simplista e ineficaz, e gerando, com nossos dados, grandes bases vulneráveis. H.L.Mencken, autor espirituoso e satírico, tinha um dito famoso: “Para cada problema complexo existe uma resposta clara, simples e... errada!”


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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/sera-que-poderiamos-identificar-conteudo-danoso-na-internet-com-o-bit-do-mal/
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O RFC 3514:
Abstract

   Firewalls, packet filters, intrusion detection systems, and the like
   often have difficulty distinguishing between packets that have
   malicious intent and those that are merely unusual.  We define a
   security flag in the IPv4 header as a means of distinguishing the two
   cases.

1. Introduction

   Firewalls [CBR03], packet filters, intrusion detection systems, and
   the like often have difficulty distinguishing between packets that
   have malicious intent and those that are merely unusual.  The problem
   is that making such determinations is hard.  To solve this problem,
   we define a security flag, known as the "evil" bit, in the IPv4
   [RFC791] header.  Benign packets have this bit set to 0; those that
   are used for an attack will have the bit set to 1.
2. Syntax

   The high-order bit of the IP fragment offset field is the only unused
   bit in the IP header.  Accordingly, the selection of the bit position
   is not left to IANA.
=
==
https://en.wikipedia.org/wiki/Evil_bit
The evil bit has become a synonym for all attempts to seek simple
technical solutions for difficult human social problems which require
the willing participation of malicious actors, in particular efforts
to implement Internet censorship using simple technical solutions.
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H.L Mencken:
https://en.wikipedia.org/wiki/H._L._Mencken
“For every complex problem there is an answer that is clear, simple, and wrong.”



terça-feira, 9 de setembro de 2025

Gurizada tardia

Proteger as crianças de riscos decorrentes de sua exposição à Internet foi o tema principal nos últimos dias. Sob o neologismo “adultização de crianças” discutem-se que medidas sensatas e tecnicamente viáveis evitariam os riscos inerentes a um ambiente tão diverso (e, para crianças, inóspito) como a Internet.

Há um contraponto, não menos preocupante… Cada vez mais adultos terceirizam a solução de seus problemas e repassam suas angústias, não como dantes, a amigos e colegas, mas a desconhecidos na rede e… a ferramentas de IA, cada vez mais presentes e poderosas. Como era de se esperar há, não raro, efeitos colaterais ruins. É comum notícias sobre indivíduos que deterioraram a saúde ao seguir conselhos que receberam da IA. E há e os que desenvolveram quadros psicóticos ou tiveram perdas financeiras pelo mesmo tipo de interação. Não é um dano exclusivo da IA, visto que o mesmo efeito deletério poderia ser obtido em conversas com amigos e aconselhadores, mas é especialmente importante ter cautela com conselhos, receitas e suporte gerado pelo interlocutor artificial.

Não se trata de olhar para a IA como algo ruim ou apocalíptico, porque é indubitável que aporta facilidades e recursos que antes nos custariam muito tempo de pesquisa e consulta. Mas não podemos abdicar dos riscos e reponsabilidades que assumimos ao tomar uma decisão, nem do nosso senso crítico. Se tropeçarmos ao andar num pátio, podemos torcer o pé, mas se tropeçamos na beira de um abismo e nele despencarmos, a culpa não seria da pedra que nos causou o tropicão.

De alguma forma, o que acontece hoje com parte dos adultos é a contraparte do que nos preocupa com as crianças: uma espécie de “infantilização” dos crescidos. Estamos desenvolvendo uma “casca” muito fina e frágil, e nos sentimos ofendidos e magoados por observações e comentários que seriam perfeitamente assimiláveis há poucos anos. Talvez seja uma constante busca de tutela e proteção, ou de ter um álibi para os erros que cometemos. Fiquei ruim de saúde? Ah, foi a IA que consultei e me deu más sugestões… Estou com os nervos em frangalhos? A culpa é que a IA não entendeu meus problemas e acabou por acirrá-los. Apliquei mal as finanças? Claro que a culpa foi do orientador digital, que indicou o fundo errado. E assim seguimos, não assumindo como erradas, escolhas que, afinal, são nossas. buscando aliviar nossa consciência. Se filosofarmos com um martelo, como no livro de Nietzsche, e acertarmos nossos dedos com ele, certamente o martelo não será o culpado. Um estranho e novo equilíbrio parece se apresentar: crianças atuando (indevidamente) como adultos, e adultos buscando tutela que os proteja das proprias decisões, ou assumindo o comportamento de “rebanho”. Como em Zaratustra, o indivíduo sempre teve de lutar para manter sua individualidade,

Consultar aconselhadores humanos ou digitais é uma ótima pedida, mas acreditar automaticamente no que vem deles é faltar senso crítico, apanágio da idade adulta. Quem não julga o que escuta permanece agindo como criança.

Sobre o valor de duvidar, há outra frase de Nietzsche: “não é a dúvida que nos deixa loucos, mas a certeza”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/adultos-vivem-era-da-infantilizacao-para-fugir-de-suas-responsabilidades/

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https://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra
https://pt.wikipedia.org/wiki/Crep%C3%BAsculo_dos_%C3%8Ddolos

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terça-feira, 26 de agosto de 2025

Há Monstros

Há poucos dias passou na Câmara dos Deputados o PL 2628 que visa à proteção de crianças e adolescentes. É importante termos leis adicionais, que estabeleçam cuidado ainda mais efetivo que o já garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e, especialmente, que gerem formas de combate e punião aos que disseminam crimes desse jaez, sejam indivíduos, operadores de algoritmos ou plataformas, Mas (… e sempre há um “mas” aqui), essas medidas têm que levar em conta características do meio digital, da Internet ubíqua e neutra, para não se criem novos problemas enquanto se combatem os existentes.

Por exemplo, a proposta de que qualquer serviço na rede verifique a idade de seus usuários, gera um enorme risco de privacidade. Não duvido que surgirão “serviços” cujo objetivo único será colecionar nossos dados, e não haverá LGPD que dê conta. Na Inglaterra hoje, onde há uma resolução equivalente, viu-se maciça migração de usuários que, por não aceitarem repassar seus dados pessoais, voltaranm-se ao uso de navegadores que garantam a privacidade, como Tor, e serviços de VPN. O louvável propósito da normativa está muito longe de ser atingido.

Outro risco de “o tiro sair pela culatra" é que, se implementada a verificação de usuários proposta no PL2628, apenas grandes plataformas conseguam (fácil… e alegremente) atendê-la . Pequenos e médios serviços podem acabar bloqueados, e estaremos cada vez mais longe da neutralidade e da distribuição, rumo a algo que parecerá um aleijão de Internet, contendo pouca variedade de serviços concentrados.

É crucial ampliar o diálogo com a comunidade técnica para encontrar formas efetivas de proteger nossas crianças e adolescentes. Algo que pode ser aventado seria, agindo diretamente nos provedores de acesso, impedir, de acordo com a faixa etária, o acesso à rede. Ou, ainda, filtrar tecnicamente para que apenas endereços adequados a crianças sejam acessíveis. Ao invés de bloquearmos tudo o que possa ser nocivo, é mais sensato e factível separar um subconjunto liberado por idade, em listas que podem ser mantidas adequadamente atualizadas.

No que tange ao conceito de Internet em si e às funções de seus diversos componentes, o PL desvia-se da realidade. Querer incluir servidores de DNS e, até, pontos de tróca de tráfego no foco de ações do projeto, indica uma pobre compreensão técnica da realidade. Numa analogia simples, seria fácil e razoável impedir que locadoras de veículos aluguem carros a menores, mas querer que rodovias ou cruzamentos detectem que há um carro dirigido por menor e impeçam sua passagem, tende à alucinação.

Este diálogo, incluindo a visão técnica da Internet, deve ser estimulado. A melhor solução continua sendo investir-se em letramento digital, especialmente voltado a professores, pais e filhos. Há bons exemplos, como a norma que limita o uso indiscriminado de celulares em salas de aula. Combater um mal exige, além de esforço concentrado, escapar dos miasmas do próprio mal. “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro”, adverte Nietzsche em “Acima do Bem e do Mal”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/eca-digital-precisa-levar-em-conta-as-caracteristicas-da-internet-para-nao-criar-novos-problemas/



"Além do Bem e do Mal":
https://pt.wikipedia.org/wiki/Para_Al%C3%A9m_do_Bem_e_do_Mal

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Texto do PL 2628:
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=10029422&ts=1756145514244&disposition=inline

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"Além do Bem e do Mal":
https://pt.wikipedia.org/wiki/Para_Al%C3%A9m_do_Bem_e_do_Mal

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Texto de Antonio Moreiras sobre o tema:
https://www.linkedin.com/pulse/eca-digital-avan%C3%A7os-importantes-vem-acompanhados-de-ovos-moreiras-hj13f/?msgControlName=view_message_button&msgConversationId=2-Zjk3MTExNGQtOGQyYS00YmFkLTg0OTAtY2RlMTMyYTUxOTI1XzEwMA%3D%3D&msgOverlay=true&trackingId=GhFMum%2FR2PwchnOvVkF5Jw%3D%3D

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Editorial do Estadão de 26/8/2025
"O desafio do marco digital para crianças"
https://www.estadao.com.br/opiniao/o-desafio-do-marco-digital-para-criancas/

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