terça-feira, 1 de julho de 2025

A Inútil Precaução

Poucas óperas são tão populares como a versão, musicada por Rossini, de O Barbeiro de Sevilha. Baseia-se em texto de Beaumarchais, mas foi composta uns 50 anos depois. Além do impagável Fígaro, o fac-totum da cidade, há aspectos mais sutis, como revela o subtítulo da obra: “A Inútil Precaução”. No Barbeiro, o velho doutor Bartolo, temendo perder sua jovem pupila, tranca-a em casa, vigia seus passos e tenta controlar o mundo ao redor para evitar o inevitável: o florescimento do desejo e da busca por liberdade. Claro que seus esforços são vãos: a precaução, além de inútil, estimula o ardil, o engano, a astúcia, e Rosina escapa da “proteção”.

Talvez algo de Bartolo subsista em certas decisões públicas que, tomadas para evitar a desordem, a mentira ou o abuso, podem se voltar contra os próprios fundamentos de liberdade e de confiança que se propunham a proteger. Ao fragilizar os princípios do artigo 19, o Brasil se arrisca a criar um ambiente de autocensura preventiva e silenciamento difuso, sem que isso combata efetivamente abusos que motivariam a mudança. É a velha armadilha do remédio errado, ou forte demais, para a doença. O editorial de domingo do Estadão cobre em detalhes o tema.

Para exemplificar um potencial paradoxo, frase no julgamento do art. 19 do MC que ressou fortemente foi da Ministra Cármen Lúcia, ao resumir o desafio: é preciso “impedir que 213 milhões de pequenos tiranos soberanos dominem os espaços digitais”. O resultado do julgamento, porém, pode ir na direção oposta: o “notice and take down”, estaria criando milhões de potenciais tiranetes que, ao se ofenderem ou simplesmente desgostarem de um texto, pedirão sua remoção. E o pedido será prontamente atendido pelos que “tem juízo e não querem correr riscos jurídicos”. Para evitar que todos tenham voz irrestrita, entrega-se a todos o poder de calar. E, caso o autor queira o restabelecimento do texto, daí sim teria que procurar a justiça para buscar seus direitos … sem direito a indenização.

Delega-se a plataformas privadas a decisão sobre o que pode ou não circular. Elas tenderão a remover rapidamente tudo que tenha sido “denunciado”, varrendo sátiras e debates públicos junto com conteúdos realmente danosos. Essa estrutura concentra poder nas mãos das próprias plataformas, que passam a ser as juízas silenciosas do discurso público. O que se pretendia como freio ao caos transforma-se num motor guiado por algoritmos, filtrado por interesses comerciais e estimulado por notificações. Enquanto isso, os verdadeiros autores de conteúdos ilícitos — organizados, anônimos, adaptáveis — continuam a atuar nas margens.

Para Beaumarchais, a tentativa de proteger um bem pela via do controle total não previne o mal, apenas o desloca e o oculta. O conteúdo abusivo não desaparece: muda de plataforma, escapa do radar, radicaliza-se. E, no processo, perdem-se também vozes legítimas, críticas incômodas, denúncias necessárias.

Se o século XVIII riu com a “inútil precaução” de Bartolo. talvez o século XXI precise chorar a nossa — que, vestida de justiça, pode nos afastar perigosamente da liberdade.

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como aparece no estadão:
https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/decisao-sobre-o-artigo-19-pode-nos-afastar-perigosamente-da-liberdade/

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A inútil precaução:


https://www.youtube.com/watch?v=3h3vPg9yBFg&list=RD3h3vPg9yBFg&start_radio=1



terça-feira, 17 de junho de 2025

Paradoxos e cacoetes

Pós-redes o mundo tornou-se hostil: fraudes, mentiras e armadilhas espreitam a cada passo. Ou será que foram os humanos? Clima propício a propostas apressadas, visando a minimizar nossos riscos. A prudência recomendaria mais cautela: “Festina Lente”, diria o imperador Augusto: “apressa-te devagar”. Trocou-se a prioridade? Parece agora ser menos importante a busca do agente causador o dano, do que criar formas que impeçam a sua ação. Ao invés de buscar caçar o lobo que abusa, prefere-se cercar e isolar a floresta onde ele viveria, mesmo sabendo que há seres inocentes habitando lá.

Na discussão sobre o artigo 19 do Marco Civil, é importante uma pequena digressão: fonte de sua inspiração foi também a seção 230 do “Communications Decency Act” norte-americano de 1996, 18 anos antes da promulgação do Marco Civil em 2014. E, já em 1998, o DCMA “Digital Millenium Copyright Act” abria uma exceção à proteção que o 230 trazia às plataformas: a alegação de “infração a direito autoral” faria com que o conteúdo fosse removido, sem necessidade de ordem judicial. Aliás o Marco Civil também prevê exceções, como da divulgação não autorizada de imagens de nudez. Nos EUA tentou-se expandir a ação deste “notifique e será removido” (notice and takedown) quando, em 2011, os famosos casos do SOPA (Stop Online Piracy Act) e do PIPA (Protect IP Act), se propunham a remover conteúdos, nomes de domínio, etc. Isso poderia trazer uma onda de censura e auto-censura, que deformaria a internet. A comunidade internmet se alvoroçou! Em 2012, em movimento uníssono, usuários e plataformas rejeitaram o “notice and takedown” - a própria Wikipedia removeu por 24 horas seu conteúdo em inglês, como forma de protesto. Alguns países adotaram medidas intermediárias, a partir da idéia de remoção por notificação. Caso interessante é o do Canadá, com o “notice and notice”: quando uma plataforma recebe uma reclamação sobre um conteúdo, ela é repassada ao autor, mas mantem-se o conteúdo no ar. - caberá ao autor decidir se prefere removê-lo e não correr riscos legais, ou se o preservá-lo, independentemente da reclamação.

Fechar a floresta não elimina o lobo, apenas o desloca. Diógenes de Sinope, com ironia, ensinava que não são as muralhas que protegem a cidade, mas a concórdia entre os cidadãos (Diógenes Laércio, VI.20). Ou seja, é a educação e a ética que geram qualidade na convivência social, no diálogo e no respeito mútuo. O caminho mais seguro não é alçar entidades em censores preventivos, mas sim responsabilizar os agentes pelos seus próprios atos, com processo e aplicação firme da lei. Isso inclui indivíduos e empresas, especialmente as que conhecem e se valem do conteúdo que recebem. Soluções rápidas costumam gerar remédios piores que a doença, erodindo a própria vitalidade democrática que pretendiam proteger. Há que se lidar com as consequências da liberdade, não eliminá-la em nome de uma segurança absoluta, que não existe. Como diriam na Atenas antiga, avançamos na “techne”, mas talvez tenhamos retrocedido na “phronesis”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/censura-nao-e-o-caminho-para-internet-segura-e-preciso-responsabilizar-agentes-por-seus-atos/

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Communications Decency Act
https://www.internetsociety.org/blog/2023/02/what-is-section-230-and-why-should-i-care-about-it/

SOPA
https://pt.wikipedia.org/wiki/Stop_Online_Piracy_Act

PIPA
https://pt.wikipedia.org/wiki/PROTECT_IP_Act

Marco Civil
https://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Civil_da_Internet
https://www.cgi.br/pagina/marco-civil-law-of-the-internet-in-brazil/180
https://www.dw.com/pt-br/dilma-sanciona-marco-civil-e-critica-espionagem-em-evento-em-sp/a-17588584







terça-feira, 3 de junho de 2025

CGI Balzaquiano

Trinta anos é um marco! Além do conceito balzaquiano de maturidade e plenitude, vem à mente o belo livro de Paulo Francis, “Trinta anos nesta noite”, publicado em 1994. Foi exatamente em 31 de maio de 2025 que o CGI comemorou 30 anos de criação, numa portaria conjunta de dois ministros: o das Comunicações (Sérgio Motta) e o da Ciência e Tecnologia (José Israel Vargas). Não por coincidência, no mesmo dia Sérgio Motta publicava uma portaria - Norma 4 - definindo a separação entre telecomunicações e Internet. Em 2009, dezesseis anos depois, o CGI publicava o Decálogo de Princípios para a Internet que, em 2014, seria a base do Marco Civil.

O espaço de liberdade, inovação e comunicação que a Internet criava foi, tempestivamente, muito bem entendido no Brasil, pioneiro em criar um órgão multissetorial que orientasse a evolução da rede que chegara ao país havia 4 anos. Essa antevisão foi festejada nos círculos mundiais de Internet, e serviu de inspiração para muitas iniciativas multissetoriais. Complemento virtuoso: os recursos que, desde 1997 passaram a vir com a cobrança de registros sob o .br, foram redirecionais para a própria Internet no Brasil, via um conjunto de ações que o NIC.br implementa e suporta.

Mas, como diria o Barão de Itararé, “tudo seria fácil, se não fossem as dificuldades…”. O que começou distribuido, compartilhado e apoiado nas ações de cada um foi, em curto tempo, concentrando-se em redes sociais, plataformas e sistemas que, se por um lado prometem conforto e facilidade aos usuários, por outro podem levá-los a uma realidade sintética e enviesada. E ainda sem falar da IA, que nos espreita ao virar da esquina, com uma eventual redefinição de “realidade”...

As redes sociais nasceram como espaços livres, mas tornaram-se campo de batalha entre inovação, segurança e privacidade. Em 2025, mais de 4,7 bilhões de pessoas — cerca de 60% da população global — estão conectadas a plataformas digitais. No Brasil, onde a Internet alcança 80% da população, elas são parte do cotidiano, do empreendedor que precisa anunciar, ao jovem que busca pertencimento. E é aí, especialmente aos menores de idade, que o impacto das plataformas tem gerado inquietação e mais discussões sobre regulamentação. Há leis que podem ser usadas: o ECA, leis sobre calúnia e difamação etc, mas é importante destacar o que o decálogo já apontava: busquemos os reais autores, sejam eles humanos, sejam algoritmos que decidem o que enviar, e a quem.

Um dos temas que o CGI apresentou no evento de seus trinta anos foi uma proposta inicial para um novo decálogo, esse sobre Princípios para Regulação de Redes Sociais. O documento foi colocado em consulta pública, visando a contribuições e aprimoramentos.

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Trinta anos do CGI:
https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/trinta-anos-de-cgi-os-paradoxos-que-a-internet-criou-no-brasil/

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Frases impagáveis do Barão de Itararé:
https://observalinguaportuguesa.org/82413-2/

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O livro do Paulo Francis, de 1994:



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Tipologia de redes sociais:
https://dialogos.cgi.br/tipologia-rede/documento/

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O decálogo sonbre redes sociais colocado em consulta pública:
https://cgi.br/publicacao/sistematizacao-das-contribuicoes-a-consulta-sobre-regulacao-de-plataformas-digitais/

https://www.cgi.br/noticia/releases/cgi-br-lanca-proposta-de-principios-para-a-regulacao-de-redes-sociais-e-abre-consulta-para-receber-contribuicoes-da-sociedade/

1. Soberania e segurança nacional
2. Liberdade de expressão, privacidade e direitos humanos
3. Autodeterminação informacional 
4. Integridade da Informação
5. Inovação e desenvolvimento social
6. Transparência e prestação de contas
7. Interoperabilidade e portabilidade
8. Prevenção de danos e responsabilidade
9. Proporcionalidade regulatória
10. Ambiente regulatório e Governança Multissetorial



terça-feira, 20 de maio de 2025

Um lobo!

Não se sabe muito sobre Esopo, que teria vivido no século VI a.C: segundo a tradição, foi escravo e conquistou sua liberdade graças à sua invulgar inteligência e sabedoria. Suas fábulas atravessaram os séculos e continuam servindo como apóstrofe e advertência para muitas situações contemporâneas. Uma delas, a do menino que gritava “lobo!”, me veio à mente enquanto testava o que se consegue hoje com as diversas ferramentas de IA disponíveis.

Na citada fábula, um pastorzinho querendo se divertir com a reação dos aldeões, grita “lobo!” enquanto apascenta suas ovelhas. Claro que todos saem em socorro do pastor, mas revela-se que eram “fake news” – não havia lobo. Satisfeito com o resultado, passados alguns dias o pastorzinho renova a pegadinha: “lobo!”. De novo o pessoal acorre e, de novo, não há lobo nenhum. Mais algum tempo se passa e, de repente, um lobo real e poderoso aparece. O pastor, desesperado, clama “lobo!” mas, desta vez, os aldeões, vacinados pelas mentiras anteriores, não comparecem. O resultado é que o lobo devora o rebanho.

A analogia que me veio à mente é com as ondas de inteligência artificial, seus ciclos de promessas, frustrações e renascimentos. Por repetição ou exagero de propaganda, IA acabava por ser desacreditada até que, enfim, o “lobo” apareceu.

A primeira onda da IA, nascida no entusiasmo das décadas de 1950 e 60 quando a computação já amadurecia, prometeu máquinas pensantes, lógicas, capazes de simular o raciocínio humano. Foi a época do Eliza (1966) e outros sistemas interativos, mas que frustraram as expectativas, mostraram-se simplórios e distantes da promessa. O resultado foi o primeiro “inverno da IA”, com o fim de investimentos na área…

Após o primeiro “inverno”, veio a segunda onda, 1980 e 90, com uso intenso de estatística, e a proposta de redes neuronais. Foi marcada pelo aumento na capacidade de processamento, com avanços notáveis em reconhecimento de padrões e em tarefas específicas, mas IA em si ainda parecia mais propaganda do que uma transformação estrutural em curso. Em 1997, o “Deep Blue” da IBM, usando computação de “força bruta” e sem aprendizado, derrotou Kasparov: a máquina ameaçava o homem, mas o público desacreditava de sistemas que aprendessem. Ainda não era o “lobo”. Seguiu-se outro “inverno” de IA.

A terceira onda vem em 2010 com aprendizado profundo de máquina, sistemas generativos criando textos e imagens sintéticas com muita verossimilhança, a “Era da Experiência”. Além de sistemas que digerem o que há no mundo e agem de forma autônoma, agora eles otimizam estratégias e propõem suas próprias perguntas. Em breve IA estará implantando soluções que não passaram pelo crivo humano. O “lobo” agora é real e está no meio de nós, silencioso e efetivo. O risco não está em reagir demais — está em não reagir mais.

Outro sinal dos tempos são os bonecos que simulam crianças: os tais “reborn”. Há os que se apegam a eles intensamente, a ponto de superar seu vínculo com humanos. Será o “lobo da IA” um “reborn” que vai substituir nossas conversas com amigos e nossos relacionamentos emocionais? Alerta!

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A fábula:
https://www.fabulasdeesopo.com.br/p/o-menino-do-pastor-e-o-lobo.html



os invernos da IA:
https://www.institutodeengenharia.org.br/site/2018/10/29/a-historia-da-inteligencia-artificial/

algumas previsões preocupantes:
https://ai-2027.com/





terça-feira, 6 de maio de 2025

Boutades

Há décadas provocava-se: “os computadores vieram prá resolver os problemas que antes não tínhamos…”. E certamente há circunstâncias em que essa ironia se aplicaria. Afinal, boa parte do “esforço computacional” que fazemos destina-se a nos proteger dos riscos e ameaças que outros “esforços computacionais”, nefastos, segundo nossa avaliação ética, fazem ao nosso espaço. Se extrapolarmos essa análise ao que a IA promete trazer, a frase deixa de ser uma boutade para se tornar um truísmo.

Um exemplo atual desse paradoxo é a corrida, constante e acelerada, entre a capacidade de gerar imagens e vídeos sintéticos hiper-realistas e as ferramentas que buscam detectá-los. Ambos os lados da disputa são alimentados por IA: tanto os sistemas que criam a "meta-realidade" artificial, quanto aqueles que almejam distinguir o real do falso. Essa dinâmica lembra a corrida interminável entre vírus de computador e antivírus — um jogo, talvez simulado, de “gato e rato”, cujo desfecho permanece incerto.

Noticiou-se recentemente que as IAs já conseguem incluir respiração e expressões emocionais sutis nas personagens que figuram em vídeos sintéticos. Um dos métodos antes utilizados para identificar fraudes visuais baseava-se justamente na ausência de minúcias como padrões de batimento cardíaco, microvariações de coloração da pele associadas à emoção, ou flutuações quase imperceptíveis da respiração. Pois bem, os geradores de vídeo já imitam esses sinais e o “crivo” de detecção precisa ser revisitado. Novas ferramentas, novos indicadores, até que eles sejam novamente ultrapassados. Se essa luta é ou não inglória, o tempo dirá — os que sobreviverem verão.

Em solução de problemas, o lado positivo é que IA permite uma investigação e correlação de volumes gigantescos de dados em tempos irrisórios - um feito impossível a humanos... Uma solução eficiente para uma vasta gama de problemas que exigiriam anos de decantação. Nesse espírito, artigos recentes sugerem que a IA já superou o “teste de imitação” de Turing: em inúmeros casos, a resposta fornecida por um LLM é mais coerente e bem articulada do que a esperada de um ser humano médio. IA imita o comportamento humano com a vantagem computacional ao digerir dados em larga escala. Ainda não estamos, claro, diante da IAG, Inteligência Artificial Geral, mas o crivo de Turing parece hoje superável.

Ressurge a provocação inicial: se a IA já assimilou a produção intelectual da humanidade, o próximo passo seria a criação autônoma de problemas e soluções? Em outras palavras: após resolver os problemas que achávamos ter, a IA passaria a propor problemas próprios, e a resolvê-los sem nossa participação? Pior: pode-se imaginar que a avaliação da qualidade dessas soluções também dispense a intervenção humana: o homem deixaria de ser a “medida de todas as coisas”. Se, como diz Nietzsche, “não há fatos, apenas interpretações”, essas interpretações já não nos pertenceriam mais. “Problemas que antes não tínhamos”? Sim, e talvez agora nem sejamos mais nós a nomeá-los.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/a-ia-pode-ter-tirado-dos-humanos-a-capacidade-de-determinar-o-que-sao-problemas-ou-nao/

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Boutade:
https://www.dicionarioinformal.com.br/boutade/


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Sobre "batimentos cardíacos" em vídeos sintéricos:
https://noticias.r7.com/internacional/deepfakes-podem-apresentar-batimentos-cardiacos-para-dificultar-a-sua-identificacao-03052025/

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Sobre IA com "iniciativas":
https://storage.googleapis.com/deepmind-media/Era-of-Experience%20/The%20Era%20of%20Experience%20Paper.pdf

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Sobre superação do Teste de Turing:
https://spj.science.org/doi/10.34133/icomputing.0102

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terça-feira, 22 de abril de 2025

Os rossios digitais

Aproveitando a época que nos leva a recordações, houve nos últimos vinte anos uma coleção de abordagens sobre mudanças que o mundo digital trazia. Palestras de Iochai Benkler na USP, textos de Lessig, de Imre Simon, o conceito de “modernidade líquida” de Zygmund Bauman e outros, trataram, com mais ou menos otimismo, das profundas alterações por que o mundo passa. E um objetivo que parece cada vez mais irreal é tentar um mapeamento entre o mundo digital e o estamento legal e social que tínhamos. Essa busca de ajuste pode nos levar a dois erros: o de tentar classificar as coisas novas ajustado-as aos paradigmas anteriores, ou ao de simplesmente ignorar ou minimizar o que acontece, até por ser difícil de entender por toda sua complexidade.


Destacando algumas das características do “mundo líquido” em que entramos e apontadas por muitos, teríamos: a abundância tomando o lugar da escassez, especialmente ligada à produção praticamente sem custos de informação, de entretenimento e comunicação - a imaterialidade dos novos bens, e o fim do conceito de distância geográfica. Dependendo das condições técnicas de momento na rede, é tão fácil acessar uma base de informação na mesma cidade, como páginas web hospedadas em outro continente. Informação recém gerada ou coletada algures, estará disponível em minutos para o consumo e disseminação geral.

De uma forma algo romantizada, o que a Internet nos trouxe poderia ser visto como um reviver do o conceito de “rossio”, ou de “commons” em inglês. As duas palavras não são totalmente congruentes, mas coincidem em trazer a idéia de “recurso de uso coletivo e livre”. Exemplos históricos seriam a Wikipedia, criada coletivamente e colocada à disposição da comunidade e, numa área mais técnica, a simbiose que gerou sistemas abertos como o Linux e afins. O trabalho voluntário e colaborativo de muitos, pelo mundo, gerou produtos que, de alguma forma, desafiaram os tradicionais, criados dentro de empresas de grande porte e com um corpo técnico muito especializado. Outro exemplo mais recentes dessa ruptura é o surgimento e popularização de tipos de licenças abertas, variadas, os “crative commons”.

Como numa gangorra, sucedem-se momentos de grande otimismo com uma reanálise ácida dos novos riscos trazidos. A idéia do rossio, comum e aberto, não impede que surjam formas de explorá-lo. Somos atraidos a fazer parte de agregados, centrados em plataformas específicas, nos alíviariam da necessidade de buscar ativamente por variedade de informações. Um conforto que pode nos levar a posições passivas e comodistas. No afã de fidelizar usuário, sistemas usam algoritmos que aumentam a sensação de pertencimento: de alguma forma premia-se a permanência do usuário fornecendo-lhe mais daquilo de que ele parece gostar. Se a internet acenou com “commons” onde todos teriam acesso geral a informação e comunicação, o aglutinamento de seus usuários em torno de serviços e plataformas volta a gerar um mundo compartimentado, agora não geograficamente, mas digitalmente. E segue a gangorra. Segundo Bauman, “… na modernidade líquida a única certeza é a incerteza”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/mudancas-digitais-desafiam-paradigmas-sociais-e-legais-da-modernidade-liquida/

https://www.lexico.pt/rossio_2/
Significado de Rossio
m. Terreno, que era roçado ou fruído, em commum, pelo povo. Logradoiro público. Lugar espaçoso; terreiro; praça larga. (Port. ant. ressio V. ressio)





Obituário de J. C. Barlow:
https://www.theguardian.com/technology/2018/feb/11/john-perry-barlow-obituary

Iochai Benkler na USP:
https://www.iea.usp.br/midiateca/apresentacao/riqueza-das-redes-simon/at_download/file

Linux e Imre Simon:
https://br-linux.org/wparchive/2009/morre-imre-simon.php

Lawrence Lessig, e Creative Commons
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Lessig
https://pt.wikipedia.org/wiki/Creative_Commons




terça-feira, 8 de abril de 2025

Bolo com arenque



Em 31 de maio o Comitê Gestor da Internet no Brasil completa 30 anos. O duplo político-técnico, que envolve a operação do .br desde 1989 mais o CGI desde 1995, sempre foi reconhecida mundialmente por sua postura coerente na defesa da Internet e seus princípios originais, a par de um funcionamento técnico de escol.

Em 1995, num mesmo dia, houve a criação do CGI por portaria conjunta do ministro da Ciência e Tecnologia, José Israel Vargas, e do ministro das Comunicações Sérgio Motta, e outra portaria, do ministro Sérgio Motta, estabelecendo o que se conhece como Norma 4. Esse conjunto virtuoso de portarias espelhava o resultado de intenso debate, liderado pela comunidade acadêmica e pela sociedade civil, que, à época, eram os componentes principal da Internet no Brasil. Redes como a do Ibase, ANSP, RNP e os reflexos positivos da Eco-92.

A Norma 4 define “Internet” e conceitos de seu ambiente, como “serviço de conexão”. Já deixava claro então que esses serviços são distintos da “rede de telecomunicação que os suporta”. Ou seja, Internet não é “telecomunicação”. Isso ficou ainda mais sólido quando da promulgação da LGT – Lei Geral de Telecomunicações, em julho de1997, especialmente em seus artigos 60 e 61. O 61, em particular reza: “Serviço de Valor Adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas…”. Note-se o setor de telecomunicações era então estatal, e que a própria Anatel seria criada em novembro do mesmo 1997.

O ambiente úbere criado em 1995, época em que praticamente tudo na Internet era gratuito, permitiu seu rápido crescimento no Brasil. Inicialmente com a migração das BBS (“Bullet Board Systems”) existentes e, logo em seguida, com a entrada em cena de empresas de midia, que criaram seus próprios provedores de acesso e de informação, já em português. O brasileiro não é avesso a novidades, e a aceitação da Internet como nova e ampla forma de comunicação foi célere.

O modelo brasileiro, multissetorial e aberto, tornou-se autossustentável a partir de 1998 e foi saudado como espelho fiel dos princípios originais da internet: abertura, liberdade, inclusão. Vint Cerf, ‘pai da internet’, ressaltou: ‘O CGI.br é uma referência global. A internet deve ser construída com a participação de todos, não apenas de governos ou corporações”. Na mesma linha foi Tim Berners-Lee, e outros de relevo na rede. A dupla virtuosa CGI/NIC, modelo invejado, retorna para a própria rede os recursos privados que recebe, e em 2022 pôde gabar-se de operar em SP o ponto de interconexão com mais tráfego do mundo, além de outros resultados auspiciosos.

Trinta anos depois, esse legado é desafiado por propostas que procuram confundir deliberadamente telecomunicações e serviços de valor adicionado (SVA). O argumento ortogonal de que ‘tarifação igual elimina a necessidade de distinção’ é um sofisma diversionista, um “arenque defumado” (“red herring”) que, partindo de uma questão tributária, busca atacar, de forma enviesada, pilares da governança da Internet.

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Norma 4:

https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/normas-do-mc/78-portaria-148

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LGT:

https://informacoes.anatel.gov.br/legislacao/leis/2-l

Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação.

§ 1º Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza.

§ 2º Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis.

Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

§ 2º É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.