Estamos no terceiro dia de primavera de 2024. Aconteceu-me rever Carmina Burana, de Carl Orff, que começa e termina com a magnífica “O Fortuna!”. A segunda parte da cantata, Primo Vere, trata da chegada da primavera e de seus efeitos em nossa vida, ânimo e ações. Inicia com “A alegre face da primavera mostra-se ao mundo, enquanto o duro inverno foge derrotado”…
O mundo hoje é mais complexo do que era à época desses versos, há uns 1000 anos. Uma outra lembrança vem, bem mais recente e menos otimista: os textos de Franz Kafka, cuja morte fez 100 anos em julho. Quando tratamos de “previsões sombrias” nossas referências normalmente, ligam-se a Aldoux Huxley, (Admirável Mundo Novo, Os Demônios de Loudun) e George Orwell (1984, Fazenda dos Animais). Mais de vinte anos antes deles, Kafka escreveu o que pareceria então “odes ao absurdo”, como A Metamorfose e O Processo, mas que podem ser lidos também como advertências ao que poderia estar nos espreitando…
Nelas Kafka capturou a essência do “non sense” e da alienação que, afinal. permeiam a condição humana. Embora escritos no início do século XX, ressoam profundamente no estado atual de um mundo onde, sob o peso da globalização, da tecnologia avançada e de crises políticas e sanitárias, é cada vez mais frequente que a desorientação e a desumanização se manifestem.
Em “A Metamorfose”, Gregor Samsa acorda uma manhã para descobrir-se transformado em uma enorme barata. Isso poderia ser relido como um sentimento de alienação experimentado no mundo moderno. Hoje, essa metamorfose se manifesta na forma como as redes sociais alteram as identidades pessoais, na sensação de nossa impotência diante dessas forças gigantescas e, muitas vezes, nas alterações que essa “transformação” provoca no tratamento que recebemos dos outros. Mais ainda, e da mesma forma que se passa com Josef K em "O Processo", sentimo-noss à mercê de sistemas burocráticos que parecem funcionar independentemente da lógica.
O crescimento das notícias falsas, a erosão de liberdades em nome de “maior segurança”, o uso de algoritmos e dados que modelam e controlam nosso comportamentos, são reflexos de um enredo kafkiano, que revela um mundo arbitrário, labiríntico e opaco. A era digital, com sua promessa de conectividade e amplo acesso à informação, pode sorrateiramente trazer mais alienação e desumanização. E nem precisamos lembrar de efeitos da IA para constatar que essa transformação, como aconteceu com Gregor Samsa, pode nos isolar da comunidade além de comprometer ainda mais nossa privacidade.
Ao examinarmos qualquer coisa hoje em dia, é crítico ir à fonte, e não simplesmente dar ouvidos aos áulicos. Nosso Marco Civil na Internet, por exemplo, foi belamente construído em processo que durou anos. Devemos lê-lo diretamente para podermos tirar conclusões e julgamento, e não seguir apenas ao sabor das narrativas.
A canção nos recomenda que “nesta solene primavera, nos alegremos com a novidade das coisas, e sigamos a autoridade das fontes”. Boa primavera!
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trecho de "O Processo", de Franz Kafka:
https://vestibular.uol.com.br/resumos-de-livros/trechos-do-livro-o-processo.htm
"Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta de oito horas, mas dessa vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes...."
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Carmina Burana, Cantiones Profanae
https://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana_(Orff)
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As tres canções que compõem o Primo Vere
VERIS LETA FACIES
Veris leta facies
mundo propinatur,
hiemalis acies
victa iam fugatur,
in vestitu varioFlora principatur,
nemorum dulcisono
que cantu celebratur. Ah!
Flore fusus gremio
Phebus novo more
risum dat, hac vario
iam stipate flore.
Zephyrus nectareo
spirans in odore.
Certatim pro bravio
curramus in amore. Ah!
Cytharizat cantico
dulcis Philomena,
flore rident vario
prata iam serena,
salit cetus avium
silve per amena,
chorus promit virgin
iam gaudia millena. Ah!
OMNIA SOL TEMPERAT
Omnia sol temperat
Purus et subtilis
Novo mundo reserat
Faciem aprilis
Ad amorem properat
Animus herilis
Et iocundis imperat
Deus puerilis
Rerum tanta novitas
In solemni vere
Et veris auctoritas
Jubet nos gaudere
Vias prebet solitas
Et in tuo vere
Fides est et probitas
Tuum retinere
Ama me fideliter
Fidem meam nota
De corde totaliter
Et ex mente tota
Sum præsentialiter
Absens in remota
Quisquis amat taliter
Volvitur in rota
ECCE GRATUM
Ecce gratum
et optatum
ver reducit gaudia
purpuratum
floret pratum
sol serenat omnia
iamiam cedant tristia!
estas redit
nunc recedit
hyemis servitia.
Iam liquescit
et decrescit
grando, nix et cetera,
bruma fugit
et iam sugit
ver estatis ubera;
illi mens est misera,
qui nec vivit,
nec lascivit
sub estatis dextera.
Gloriantur
et letantur
in melle dulcedinis
qui conantur,
ut utantur
premio Cupidinis;
simus jussu Cypridis
gloriantes
et letantes
pares esse Paridis.
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