terça-feira, 19 de novembro de 2024

Internet em Bizâncio

Em Istambul houve, semana passada, a 81.a reunião da ICANN – entidade que coordena a distribuição global de nomes e números na Internet. São tres reuniões anuais realizadas em rodízio de regiões geográficas, e a última de cada ano é a chamada “reunião geral”. ICANN é uma instituição privada sem fins lucrativos, estabelecida na Califórnia, EUA. Tem como função técnica precípua administrar a “raíz de nomes” da Internet. É nessa “raíz” que se alojam os chamados “domínios de topo”, que formam último “sobrenome” das denominações na rede. Os domínios de topo se dividem em duas famílias com algumas características diferentes: a dos “domínios genéricos” (gTLD), que inclui os populares .com, .net, .org e, por iniciativa da ICANN, já ganhou a adição de mais de 2000 integrantes, e os domínios de código de país (ccTLD), que apresentam-se com duas letras e são cerca de 300: .ar, .br, .ch, .de, etc. A criação de ccTLD precede a da própria ICANN: o .br, por exemplo foi ativado em 1989, e a ICANN consolidada em 1996.

Para se financiar ICANN conta com contribuições, em geral voluntárias, de ccTLD e contribuições definidas em contrato com os gTLD. Assim, a criação de mais gTLD pela própria ICANN, representa também uma forma de a entidade aumentar sua receita. Um aspecto imortante que diferencia gTLD de ccTLD é que, enquanto os gTLD são criados e tem sua forma de funcionar definida através de contrato com ICANN, os ccTLD são sujeitos à legislação local do país em que se encontram. Em favor dos ccTLD pode-se adicionar que, em termos de segurança e como fonte de ataques, eles são mais seguros que os gTLD num fator médio de 5. No caso do .br, por exemplo, são aceitos apenas pedidos de registros com CPF ou CNPJ, e é sempre visível saber quem registrou determinado domínio. Como todos os domínios funcionam igualmente na rede, alguém mal-intencionado provavelmente preferirá registrar sob um gTLD que num ccTLD.

Sendo multissetirial, a ICANN conta também com participação de representantes de governos, num “comitê assessor”, representantes da sociedade civil geral, e representantes de órgãos técnicos relacionados à rede. O tema principal desta reunião foi tratar das providências necessárias e previsões contratuais referentes a uma nova leva de gTLD que será ofertada a interessados. Certamente há muitos pontos de alerta a serem levados em conta, e todos os segmentos envolvidos expressam suas preocupações.

Saindo do tópico, Istambul é uma cidade bem grande, com cerca de 16 milhões da habitantes lon. Temgo legado histórico, uma vida fervilhante e se mostra muito segura aos visitantes. Istambul nasceu e foi Bizâncio por mil anos. No ano de 324, reinado de Constantino, for rebatizada Constantinopla, a Nova Roma. Mais 1600 anos se passaram até 1930, quando foi renomeada Istambul. É cheia de monumentos históricos importantes, como a Santa Sofia, construida em 537 para ser a catedral da Nova Roma, e que ainda hoje ostenta seu imponente domo e belos mosaicos. Napoleão teria dito que se o mundo fosse uma única nação, sua capital seria Constantinopla.


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https://meetings.icann.org/en/meetings/icann81/

ICANN81 Annual General Meeting
This six-day Annual General Meeting (AGM) will be focused on showcasing ICANN’s work to a broader global audience, with more time dedicated to capacity building and leadership training sessions. The AGM is also where new members of the ICANN Board of Directors take their seats.
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Santa Sofia (537):
https://en.wikipedia.org/wiki/Hagia_Sophia

Torre Gálata (1348):






terça-feira, 5 de novembro de 2024

Revendo Leis



A tecnologia está exigindo revisitas frequentes à legislação que temos, em busca de desacelerar os abusos, seja com lenitivos aos ofendidos, seja com punições adequadas aos ofensores. Do ponto de vista pouco sofisticado de um engenheiro, há princípios que devem ser resguardados ao máximo, e deve-se evitar o risco de soluções simplistas, apenas porque estão “à mão”. Aliás, do próprio decálogo que o CGI publicou em 2009, lemos: “O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos”. Em grego, remédio e veneno tem a mesma raiz, “fármaco”. A dosagem definirá se sua ação é positiva ou deletéria. Em português “droga” tem a mesma dualidade.

Se a Internet já nos trouxe complicações de monta nessa área, a coisa tende a piorar sensivelmente com a expansão de Inteligência Artificial. Tanto Internet, como IA e o mundo digital em sua expansão, proveram ao cidadão e às empresas um poder inaudito: o de participar ativamente, seja ao exprimir suas opiniões e posições, seja usando IA para seu apoio e eventuais decisões. Em IA a discussão é mais complexa, pelos riscos muitos vezes ignorados que seu uso pode acarretar. Ela é mais que uma simples “ferramenta” e, ainda assim, seu uso legítimo e correto está mais ligado ao que os usuários fazem, do que a eventuais problemas e viéses que ela pode embutir.

Lemos recentemente, por exemplo, que houve um suicídio de um jovem, ao que se diz causado por desenganos em seu relacionamento com avatar de IA. Quem seria responsabilizável por isso? Aparentemente, tenta-se atribuir ao fornecedor da IA os danos emocionais causados. E esse não é um caso novo: quando Goethe escreveu “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, em 1774, houve uma onda de suicídios na Europa, suscitados pelo próprio fim que Werther pos à sua vida, na impossibilidade de realizar seu amor. Ora, não creio que Goethe tenha sido responsabilizado pelo romance ou, menos ainda, a editora que publicou o livro. Claro que é necessário cuidado nos efeitos que uma obra pode causar, e eles podem ser mitigados estabelecendo adequada orientação de leitura adequada para cada idade. Afinal, como as obras do Marques de Sade exemplificam, há obras bem complexas e polêmicas,

Outro caso recente relata abuso virtual, que também levou ao suicídio de uma adolescente. O criminoso no caso, sem nunca ter encontrado a vítima em pessoa, foi condenado a prisão perpétua na Irlanda. Certamente a forma que ele usou é abjeta, e ele, ao que consta, a repetiu com mais de 3000 adolescentes em diferentes países. Claro que isso só foi possível porque a rede dá essa flexibilidade de acesso. Como minimizar esses riscos? Numa analogia com o mundo real, um adolescente numa biblioteca física podia buscar Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou “Os 120 Dias de Sodoma”, de Sade. Se, na biblioteca, pode-se sinalizar as prateleiras, isso fica mais difícil na Internet global. De novo, a diferença entre remédio e veneno é apenas a dose...

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"Os sofrimentos do jovem Werther":

https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Sofrimentos_do_Jovem_Werther

e, em bela versão operística:
https://www.youtube.com/watch?v=p90HEtK1Bi0

a ária mais conhecida:
https://www.youtube.com/watch?v=UmYSKZpbSHY
https://www.youtube.com/watch?v=PzKhikZ4oVE
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Textos de Barlow:

(John Perry Barlow – The Economy of Mind - "Vendendo vinho sem garrafas"

https://www.eff.org/pages/selling-wine-without-bottles-economy-mind-global-net

https://designmanifestos.org/john-perry-barlow-the-economy-of-ideas/

https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=4076&context=facpub

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O caso do abusador condenado:

https://www.theguardian.com/uk-news/2024/oct/25/alexander-mccartney-northern-ireland-man-jailed-for-life-abusing-children-online

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Opinião: Morte de jovem que se apaixonou por IA expõe lacuna legal

https://www.migalhas.com.br/quentes/418449/opiniao-morte-de-jovem-que-se-apaixonou-por-ia-expoe-lacuna-legal

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terça-feira, 22 de outubro de 2024

Aspirando dados

Falou-se nestes dias sobre aspiradores de pó “inteligentes”, que estariam agindo de forma estranha e abusiva. Não apenas recolhendo dados da residência em que operam e enviando-os ao fabricante – o que, de certo modo, era até previsto pelos “termos de uso” que acompanham o equipamento - mas também, após invadidos por terceiros, usarem o altofalante para disparar impropérios e obscenidades… Seria cômico, não fosse preocupante.

De tempos em tempos questões básicas retornam. Há 10 anos, por exemplo, houve um alerta, associado à grande difusão da Internet das Coisas, de que dispositivos caseiros – à época o caso mais difundido era o de câmeras de vigilância domésticas - estariam sendo invadidos por programas maliciosos. Um caso emblemático foi do virus Mirai, que conseguiu montar e controlar um exército de equipamentos “zumbis”.

Há diferentes pontos a considerar aí. Quanto à motivação para captura de dados, a explicação mais plausível hoje é a ligada à Inteligância Artificial, e ao fato de que o “aprendizado de máquina” depende viceralmente da aquisição de grande quantidade de dados, principalmente no ambiente em que atuará. Essa, inclusive, é a explicação embutida nos “termos de uso” do fabricante: para um dispositivo automático ser eficiente e confiável, ele deve reconhecer, com a maior acuidade possível, o ambiente em que se encontra, e o modo de ação que dele se espera. Isso exige, por exemplo, que esses dispositivos permaneçam ligados à Internet. Afinal, e pensando bem, por que um aspirador que está operando numa casa precisaria, indefectivelmente, estar ligado à rede para funcionar? Ao menos por enquanto, outros eletrodomésticos convencionais funcionam sem acesso à rede… A primeira ameaça que presiste, portanto, é a de que dados nossos, inadvertidamente, sejam coletados e enviados ao fabricante, à guisa de “aperfeiçoamento dinâmico do sistema”.

A segunda e mais insidiosa possibilidade vem de que, se existe um caminho de acesso remoto, ele poderá ser explorado por mal-intencionados. Claro que descuidar de senhas, fracas ou antigas, facilita a ação de invasores, mas – e é o que se vê no caso - mesmo com cuidados básicos do usuário, eventuais brechas de segurança do fabricante permitiram o acesso indevido. Alguns invasores, como o Mirai, buscavam manter-se invisíveis até porque seu alvo não era o equipamento em si: eles visavam a objetivos mais gerais. Usando os pontos invadidos como base, o exército do Mirai buscava, com ataque de “negação de serviço” (DoS) tirar do ar serviços importantes. E buscava manter-se invisível. Alguns dos invasores atuais, entretanto, ou buscam nossos dados, ou querem mostrar “competência” e haurir a “fama” do feito. Assim, não hesitam em exibir-se, dirigindo impropérios ao pessoal da casa. Se o aspirador tem altofalante e microfone para poder dialogar com o pessoal de casa, nada impede que se usem para um fim menos digno. E onde há uma “porta”, há sempre um risco de intrusão. A hiperconectividade facilita o abuso de nossa privacidade. Fiquemos atentos!

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Notícias sobre o caso:
- do Bruce Schneier:
https://www.schneier.com/blog/archives/2024/10/deebot-robot-vacuums-are-using-photos-and-audio-to-train-their-ai.html

- do Panda Security

- na Austrália:

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trecho dos "termos de uso" da Ecovacs:
https://gl-us-wap.ecovacs.com/content/agreementNewest/PRIVACY/DEFAULT/DEFAULT
We, Ecovacs Robotics Co., Ltd. (hereinafter referred to as “we”, “us” or “our”) respect and protect your privacy and personal information. This ECOVACS HOME Privacy Policy (hereinafter referred to as this “Policy”) explains the way we process your personal information and the rights you have under this Policy, when you use the ECOVACS HOME App provided by us (hereinafter referred to as the “App”) to control and administer the robotic cleaning device that are connected to your App user account (hereinafter referred to as the “Device”). Being the App operator, we act as the controller of your personal data which we will obtain directly from you as the data subject. The App may contain links to external websites operated by our affiliates, third parties or us. When you click on such a link, the website will be presented in the web browser of your smart phone and the processing of your personal information will be subject to the privacy policy of the relevant website.



terça-feira, 8 de outubro de 2024

Tempos…

Quinta-feira passada tomou posse, como novo acadêmico da Academia Paulista de Letras, o jornalista e colunista deste jornal, Eugênio Bucci. Posso colocar como ponto muito positivo de minha trajetória o ter tido o privilégio de encontrá-lo e conviver em diversas instâncias da vida. Tendo como padrinho o ilustre jurista e intelectual Celso Lafer, Eugênio assumiu a cadeira 12 da APL. Ambos brindaram os presentes com excelentes e provocativos discursos.

Da parte que diz mais respeito ao nosso tema, destaco uma tirada espirituosa de Eugênio, quando já perto do final de seu discurso, e fazendo referência ao tema do momento – a Inteligência Artificial e seus riscos – chamou a atenção para algo que considerava igualmente preocupante e talvez, sistematicamente descurado: o avanço da “ignorância artificial”. As risadas que se seguiram à boutade talvez reforcem que, de fato, não estaríamos dando a atenção devida.

Começo por notar o adjetivo “artificial”. O conceito básico aqui é “algo feito com artifício”, por algum agente, um“artífice”. Não se trata de mera oposição a “natural”, mas atem-se ao fato de ser uma criação humana. Ou seja, essa “ignorância” é diferente da “falta de informação e de conhecimento sobre algo”, como seria a ignorância natural. Talvez seja algo construido de forma lenta, talvez insuspeitada. Não é o caso de brotarem teorias conspiratórios, mas talvez de constatarmos os efeitos que advêm da exposição contínua e intensa ao mundo de redes e toda sua parafernália.

Que hoje a IA tenha desestimulado a leitura em sua forma imersiva e tradicional, parece um fato estabelecido. Como diz Huxley em Admirável Mundo Novo, “não consumiremos muito se ficarmos sentados, lendo…”. Consegue-se um resumo instantâneo de qualidade incerta, bastando pedí-lo a uma ferramenta de IA. Poupa-nos o trabalho de destrinçar o texto e as idéias do autor, e nos provê um resumo insosso e bastante superficial. Não é muito diferente o que se passa com nossas atuais fontes de informação, das quais aproveitamos, se tanto, a manchete. E para eventual sentimento de solidão e isolamento, há os avatares que nos fazem companhia, consolam e divertem. A associação da velocidade e da ubiquidade da Internet, com do poder dos algoritmos em nos enredar, faz com que tenhamos nossa porção gratuita de “felicidade”, como acontecia com o SOMA no Admirável Mundo Novo.

Nada disso desmerece ou diminui os avanços espantosos da tecnologia, nem serve para desestimular o uso das novas ferramentas. Já existe até uma “engenharia de ‘prompts’” visando a nos capacitar a pedirmos com mais acurácia o que esperamos obter da IA. Mas devemos nos manter atentos.

Relembrando os discursos daquela sessão na APL (enquanto procuro acompanhar também os resultados do primeiro turno das eleições, a apenas minutos do fechamento das urnas…), outra provocação vem à mente: em seu discurso de apresentação do postulante, Celso Lafer citou um adágio, que penso atemporal. Disse ele: “a verdade não morre, mas tem uma vida miserável...”.

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Trecho citado de "O Admirável Mundo Novo":

https://www.goodreads.com/quotes/594665-you-can-t-consume-much-if-you-sit-still-and-read

“You can't consume much if you sit still and read books."

Sobre o SOMA:
https://cornellsun.com/2023/11/27/modern-soma/

"Soma is the instant gratification drug that has desensitized society in Aldous Huxley’s 1932 Brave New World. But 92 years later, this drug sounds awfully familiar — it’s just been going by different names: phones, the Internet, the virtual world. I fear how similar our dissociative societies are, as Huxley’s world blurs into our own. Is his world a road map for the journey we are about to begin, or a warning that will help us avoid an artless, passionless society where we are enslaved to instant gratification technology?

https://www.huxley.net/soma/somaquote.html




terça-feira, 24 de setembro de 2024

Primo Vere

Estamos no terceiro dia de primavera de 2024. Aconteceu-me rever Carmina Burana, de Carl Orff, que começa e termina com a magnífica “O Fortuna!”. A segunda parte da cantata, Primo Vere, trata da chegada da primavera e de seus efeitos em nossa vida, ânimo e ações. Inicia com “A alegre face da primavera mostra-se ao mundo, enquanto o duro inverno foge derrotado”…

O mundo hoje é mais complexo do que era à época desses versos, há uns 1000 anos. Uma outra lembrança vem, bem mais recente e menos otimista: os textos de Franz Kafka, cuja morte fez 100 anos em julho. Quando tratamos de “previsões sombrias” nossas referências normalmente, ligam-se a Aldoux Huxley, (Admirável Mundo Novo, Os Demônios de Loudun) e George Orwell (1984, Fazenda dos Animais). Mais de vinte anos antes deles, Kafka escreveu o que pareceria então “odes ao absurdo”, como A Metamorfose e O Processo, mas que podem ser lidos também como advertências ao que poderia estar nos espreitando…

Nelas Kafka capturou a essência do “non sense” e da alienação que, afinal. permeiam a condição humana. Embora escritos no início do século XX, ressoam profundamente no estado atual de um mundo onde, sob o peso da globalização, da tecnologia avançada e de crises políticas e sanitárias, é cada vez mais frequente que a desorientação e a desumanização se manifestem.

Em “A Metamorfose”, Gregor Samsa acorda uma manhã para descobrir-se transformado em uma enorme barata. Isso poderia ser relido como um sentimento de alienação experimentado no mundo moderno. Hoje, essa metamorfose se manifesta na forma como as redes sociais alteram as identidades pessoais, na sensação de nossa impotência diante dessas forças gigantescas e, muitas vezes, nas alterações que essa “transformação” provoca no tratamento que recebemos dos outros. Mais ainda, e da mesma forma que se passa com Josef K em "O Processo", sentimo-noss à mercê de sistemas burocráticos que parecem funcionar independentemente da lógica.

O crescimento das notícias falsas, a erosão de liberdades em nome de “maior segurança”, o uso de algoritmos e dados que modelam e controlam nosso comportamentos, são reflexos de um enredo kafkiano, que revela um mundo arbitrário, labiríntico e opaco. A era digital, com sua promessa de conectividade e amplo acesso à informação, pode sorrateiramente trazer mais alienação e desumanização. E nem precisamos lembrar de efeitos da IA para constatar que essa transformação, como aconteceu com Gregor Samsa, pode nos isolar da comunidade além de comprometer ainda mais nossa privacidade.

Ao examinarmos qualquer coisa hoje em dia, é crítico ir à fonte, e não simplesmente dar ouvidos aos áulicos. Nosso Marco Civil na Internet, por exemplo, foi belamente construído em processo que durou anos. Devemos lê-lo diretamente para podermos tirar conclusões e julgamento, e não seguir apenas ao sabor das narrativas.

A canção nos recomenda que “nesta solene primavera, nos alegremos com a novidade das coisas, e sigamos a autoridade das fontes”. Boa primavera! 

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trecho de "O Processo", de Franz Kafka:


https://vestibular.uol.com.br/resumos-de-livros/trechos-do-livro-o-processo.htm

"Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta de oito horas, mas dessa vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes...."

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Carmina Burana, Cantiones Profanae

https://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana_(Orff)



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As tres canções que compõem o Primo Vere

VERIS LETA FACIES

Veris leta facies

mundo propinatur,
hiemalis acies
victa iam fugatur,
in vestitu vario

Flora principatur,
nemorum dulcisono
que cantu celebratur. Ah!

Flore fusus gremio
Phebus novo more
risum dat, hac vario
iam stipate flore.
Zephyrus nectareo
spirans in odore.
Certatim pro bravio
curramus in amore. Ah!

Cytharizat cantico
dulcis Philomena,
flore rident vario
prata iam serena,
salit cetus avium
silve per amena,
chorus promit virgin
iam gaudia millena. Ah!

OMNIA SOL TEMPERAT

Omnia sol temperat
Purus et subtilis
Novo mundo reserat
Faciem aprilis
Ad amorem properat
Animus herilis
Et iocundis imperat
Deus puerilis

Rerum tanta novitas
In solemni vere
Et veris auctoritas
Jubet nos gaudere
Vias prebet solitas
Et in tuo vere
Fides est et probitas
Tuum retinere

Ama me fideliter
Fidem meam nota
De corde totaliter
Et ex mente tota
Sum præsentialiter
Absens in remota
Quisquis amat taliter
Volvitur in rota

ECCE GRATUM

Ecce gratum
et optatum
ver reducit gaudia
purpuratum
floret pratum
sol serenat omnia
iamiam cedant tristia!
estas redit
nunc recedit
hyemis servitia.

Iam liquescit
et decrescit
grando, nix et cetera,
bruma fugit
et iam sugit
ver estatis ubera;
illi mens est misera,
qui nec vivit,
nec lascivit
sub estatis dextera.

Gloriantur
et letantur
in melle dulcedinis
qui conantur,
ut utantur
premio Cupidinis;
simus jussu Cypridis
gloriantes
et letantes
pares esse Paridis.

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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Teorias conspiratórias


A criação de artefatos que visassem a imitar um humano é antiga obsessão. Para citar alguma referência não tão distante, Descartes em seu Discurso para o Método (1637) já cogitava um dia haver máquinas que simulassem reações humanas, mas assumia que seria muito fácil distingir as máquinas dos humanos. Na linha de engôdos, um caso que teve bastante repercussão foi o “turco mecânico”, pretensa máquina que jogava xadrez em nível bem elevado exibida entre 1770 e 1864, com bastante sucesso em toda a Europa.

A possibilidade de se emular o comportamento humano nunca saiu de cena, e ganhou ainda mais ímpeto com o surgimento do computador. Marco clássico disso foi a proposta por Alan Turing, 1950, de haver um teste para distinguir se um pretenso interlocutor, atrás de um biombo, era humano ou máquina. E para escapar da dificuldade em definir “pensar”, Turing chamou-o de “jogo da imitação”.

Semana passada, em evento de lançamento do “Observatório Brasileiro de IA”, houve uma interessante palestra de Wagner Meira, UFMG, que abordou experimentos e aspectos técnicos da aprendizagem de máquina. Recomenda-se aos interessados que assistam a ela, disponível na rede; alguns dos dados trazidos são muito interessantes. Num ponto examina-se o que acontece de imprevisível com o aprendizado de máquina quando, ao oferecer-lhe um conjunto de dados para um objetivo específico, ela extrapola gerando “aprendizado” em pontos não previstos. Por exemplo, a partir de conjuntos de eletrocardiogramas para detecção de doenças, a IA gerou ainda uma previsão de expectativa de vida dos examinados.

Outro resultado curiosíssimo veio de submeter ao ENEM tradicional diversos aplicativos LLM disponíveis hoje.O resultado foi bastante inesperado: em linguagem, humanidades e ciências naturais IA teve desempenho equivalente ou melhor que os humanos, destacando-se bastante em alguns casos. Porém, em matemática os LLM fracassaram claramente. Como justificar isso? A princípio pode-se dizer que o universo de dados é muito mais rico em exemplos de linguagem, que em resolução de problemas, mas pode-se também olhar sob outro prisma: linguagem é o apanágio que nos fez humanos. Dominar a linguagem é a forma de pensamento que temos. E nesse espaço as LLM vão espantosamente bem!. As comezinhas máquinas de calcular que se preocupem em fazer conta. IA está buscando a âmago da humanidade: o domínio da linguagem. E sai-se muito bem aí.

Ludwig Wittgenstein elaborou sobre a interação entre o pensamento e a linguagem. Seu aforismo 5.6, do Tractatus Logico-Philosophicus, diz: “O limite de minha linguagem marca os limites de meu mundo”…

Voltando ao Teste de Turing, uma máquina que acertasse todas as questões matemáticas dificilmente passaria por “humano”. Afinal, erramos bastante aí. Assim, as LLM. ao irem melhor em humanidades que em matemática, garantem maiores possibilidades de passar no teste. Um comportamento “humano, demasiadamente humano”...

É temerário tentar um diagnóstico do ponto onde nos achamos. O Tractatus fecha com o enigmático aforisma 7: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”.

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O teste de Turing
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teste_de_Turing


"Em 1966, Joseph Weizenbaum criou um programa que aparentava passar no Teste de Turing. O programa, denominado ELIZA, trabalhava examinando comentários digitados por um usuário procurando por palavras-chave. Se uma palavra-chave era encontrada, a regra que transforma o comentário do usuário era aplicada e a sentença resultante retornada. Se nenhuma palavra-chave era encontrada, ELIZA retornava uma resposta genérica ou repetia o retorno do comentário anterior.[22] Além disso, Weizenbaum desenvolveu ELIZA de modo a replicar o comportamento de um psicoterapeuta Rogeriano, permitindo ELIZA, assim, ser "quase que livre para assumir uma postura de desconhecimento total do mundo real".[23] Com essas técnicas, o programa de Weizenbaum foi capaz de fazer com que pessoas acreditassem que estavam falando com um ser humano, ao ponto de, para algumas pessoas ser "muito difícil de convencê-las que ELIZA [...] não é um humano".[23] Assim, ELIZA foi considerada por alguns como um programa (talvez o primeiro) a passar no Teste de Turing,"

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"O Turco foi uma máquina de jogar xadrez supostamente provida de inteligência artificial construída na segunda metade do século XVIII. De 1770 até sua destruição num incêndio em 1854, foi exibido por vários proprietários como um autômato, apesar de o seu funcionamento ter sido revelado no início da década de 1820 como um elaborado hoax.[1] Construído em 1770 por Wolfgang von Kempelen (1734–1804) para impressionar a Imperatriz Maria Teresa da Áustria, o mecanismo parecia ser capaz de jogar um partida contra um forte oponente humano, assim como executar o problema do cavalo, onde o Cavalo deve ser movimentado no tabuleiro de modo a ocupar cada casa somente uma vez."

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Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tractatus_Logico-Philosophicus


https://www.gutenberg.org/files/5740/5740-pdf.pdf


5.6 The limits of my language mean the limits of my world.
7 Whereof one cannot speak, thereof one must be silent

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A palestra de Wagner Meira
https://www.youtube.com/watch?v=O9czIDgeVFI&t=1838s
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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Presságios semânticos

 Fevereiro de 1996, em momento de discussão sobre conteúdos “não adequados para plataformas de comunicações”, John Perry Barlow (que em 1990 fundara a EFF- Electronic Frontier Foundation), escreveu a “Declaração de Independência do Ciberespaço” como resposta imediata ao “Decency Act” norte-americano. É um texto que repete o espírito fundante dos pioneiros da Internet e, claro, sua utopia da permanente revolução que ela seria capaz de promover no mundo. “Nosso mundo está, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em lugar nenhum, mas não é onde pessoas vivem. Estamos criando um mundo em que todos poderão entrar, sem privilégios ou preconceitos de raça, poder econômico, força militar ou lugar de nascimento. Um mundo onde qualquer um, em qualquer lugar, poderá expressar suas opiniões…”. Barlow, que nos deixou em 2018 e visitou o Brasil algumas vezes, não pôde presenciar o reviver da velha polêmica de 1996.

Certamente coisas mudam e conceitos devem ser revistos mas, como observador do cenário, noto que, às vezes, discussões são distorcidas para atender a objetivos enviesados. Cito dois casos: “liberdade de expressão” é algo fundamental, o que não quer dizer, em absoluto, que não devamos ser responsáveis pelo que afirmamos. Não se trata de impedir a expressão, mas de punir o enunciante, se o que disse configura-se “crime” na legislação em que vive. O esforço para que não se diga algo parece-me inútil e inafequado, e assim também é pedir ao meio que se recuse a receber idéias que ele considere nefastas. Se o papel aceita quaisquer idéias que um lápis coloque lá, isso não significará impunidade a quem usou da liberdade para disseminar calúnias, difamações. Com a Internet é muito difícil alguém escrever algo sem deixar traços que o denunciem. O outro exemplo é no sentido contrário: não entendo, em minha limitação, o que significaria o “direito ao esquecimento”… Alguém teria o direito, sobre a mente dos demais, para que algo fosse esquecido? Claro que se algo falso e superado for utilizado contra alguém, que o arcabouço legal puna o agressor. Tentar fazer isso preventivamente parece-me pretencioso e abusivo.

Finalmente, no tema “fronteiras”, há que se respeitar culturas locais que, por vezes, podem ser bem diversas. Querer que o mundo siga numa linha definida por um bloco, por mais evoluido que ele se considere, parece abusivo. A “longa manus” da UE em relação ao “direito ao esquecimento” não deveria atingir outros domínios nacionais. O princípio de Barlow, de não haver tutela e filtros apriorísticos, ainda deveria valer. E que cada um se responsabilize pelo que publicou.

Entretanto o demônio, sempre atento, ouviu Barlow e se aproveitou de um escorregão no título… Ao denominar o espaço de interlocução e de comunicação de “ciberespaço”, foi usada a raiz grega “ciber”, que significa controle, governança. Ou seja, sem notar, Barlow conjurara os espíritos maliciosos para que pudessem transformar a Internet inicial numa “rede de controle”. A semântica buscou (e conseguiu!) sua vingança.

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"Cyber"
https://www.tripwire.com/state-of-security/humanity-and-evolution-of-cyber



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O livro de Norbert Wiener, que definiu "cibernética"
https://en.wikipedia.org/wiki/Cybernetics:_Or_Control_and_Communication_in_the_Animal_and_the_Machine