Poucas óperas são tão populares como a versão, musicada por Rossini, de O Barbeiro de Sevilha. Baseia-se em texto de Beaumarchais, mas foi composta uns 50 anos depois. Além do impagável Fígaro, o fac-totum da cidade, há aspectos mais sutis, como revela o subtítulo da obra: “A Inútil Precaução”. No Barbeiro, o velho doutor Bartolo, temendo perder sua jovem pupila, tranca-a em casa, vigia seus passos e tenta controlar o mundo ao redor para evitar o inevitável: o florescimento do desejo e da busca por liberdade. Claro que seus esforços são vãos: a precaução, além de inútil, estimula o ardil, o engano, a astúcia, e Rosina escapa da “proteção”.
Talvez algo de Bartolo subsista em certas decisões públicas que, tomadas para evitar a desordem, a mentira ou o abuso, podem se voltar contra os próprios fundamentos de liberdade e de confiança que se propunham a proteger. Ao fragilizar os princípios do artigo 19, o Brasil se arrisca a criar um ambiente de autocensura preventiva e silenciamento difuso, sem que isso combata efetivamente abusos que motivariam a mudança. É a velha armadilha do remédio errado, ou forte demais, para a doença. O editorial de domingo do Estadão cobre em detalhes o tema.Para exemplificar um potencial paradoxo, frase no julgamento do art. 19 do MC que ressou fortemente foi da Ministra Cármen Lúcia, ao resumir o desafio: é preciso “impedir que 213 milhões de pequenos tiranos soberanos dominem os espaços digitais”. O resultado do julgamento, porém, pode ir na direção oposta: o “notice and take down”, estaria criando milhões de potenciais tiranetes que, ao se ofenderem ou simplesmente desgostarem de um texto, pedirão sua remoção. E o pedido será prontamente atendido pelos que “tem juízo e não querem correr riscos jurídicos”. Para evitar que todos tenham voz irrestrita, entrega-se a todos o poder de calar. E, caso o autor queira o restabelecimento do texto, daí sim teria que procurar a justiça para buscar seus direitos … sem direito a indenização.
Delega-se a plataformas privadas a decisão sobre o que pode ou não circular. Elas tenderão a remover rapidamente tudo que tenha sido “denunciado”, varrendo sátiras e debates públicos junto com conteúdos realmente danosos. Essa estrutura concentra poder nas mãos das próprias plataformas, que passam a ser as juízas silenciosas do discurso público. O que se pretendia como freio ao caos transforma-se num motor guiado por algoritmos, filtrado por interesses comerciais e estimulado por notificações. Enquanto isso, os verdadeiros autores de conteúdos ilícitos — organizados, anônimos, adaptáveis — continuam a atuar nas margens.
Para Beaumarchais, a tentativa de proteger um bem pela via do controle total não previne o mal, apenas o desloca e o oculta. O conteúdo abusivo não desaparece: muda de plataforma, escapa do radar, radicaliza-se. E, no processo, perdem-se também vozes legítimas, críticas incômodas, denúncias necessárias.
Se o século XVIII riu com a “inútil precaução” de Bartolo. talvez o século XXI precise chorar a nossa — que, vestida de justiça, pode nos afastar perigosamente da liberdade.
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